A Penumbra ao Amanhecer
A Despedida – De onde vem a luz e onde mora a escuridão? – Cortinas de Cacimbo
(Excertos de diário e correspondência)
Beira, paisagem líquida de frágeis dunas e mangais, istmo de terra à deriva entre marés, tormentas e bonanças. Semente anfíbia, cidade-oásis implantada no coração de um pântano. Breves decénios para ser criada, do barro ao cimento, da palha ao zinco, tijolo a tijolo. Umbigo da antiga fortaleza de Sofala (1) de onde muralhas seculares, ossadas da guarnição portuguesa, foram transplantadas para edificar a sua catedral: uma peregrinação do profano ao sagrado, da ruína ao prodígio. Este o enigmático lugar que me viu nascer.
Ruínas de Sofala, 1902
1. A despedida (Diário de Junho de 1979)
Desfilando ao longo da viatura jaz a irreconhecível cidade à luz de uma opressiva alvorada. No ar enevoado paira um aroma de terra queimada. Enredado numa malha epidérmica que se desfia a par-e-passo, rompendo o fio condutor desta penosa aparição, pergunto-me: como ler uma paisagem desmembrada em que as partes já não fazem parte do todo? Como entender uma irreconhecível realidade quando vejo a madrugada que desponta anunciar já um iminente anoitecer?
Nesta curta estadia não tive quem visitar: depois da inesperada fuga dos meus pais após terem conhecimento de uma ordem de prisão para breve, da morte de Domingos pouco tempo antes, e da partida dos poucos amigos que aqui tinha, nada mais me resta do que apressar fazer o aqui me trouxe: uma última visita à casa onde cresci, enfrentar a tragédia de despedir os empregados depois de muitos anos de serviço; tentar recuperar o cão de guarda desaparecido após a partida de meus pais; e esvaziar a alma de uma casa de família sem outro destino senão o de ser em breve ‘nacionalizada’ (2)...
Um inesperado adeus que me levam a questionar se as memórias de infância que me ocorrem me pertencem de todo, ou se serão imaginação de outras vidas que não a minha. Mas as imagens persistem, e são inegavelmente minhas: mão-nas-mãos, em passeio com minha mãe, minha irmã Nini ou o ‘pequenino’ Artur que olhava por mim nos meus primeiros anos; onde a areia branca, quente e macia, afaga o diminuto pé-descalço; aonde o rumor das ondas lambe o areal que engole catrefadas de pequenas ameijoas-de-língua-de-fora na baixa-mar... O longo ócio de domingo, os passeios entre a Praça do Município e o Farol do Macúti, a brisa acariciando o friso azul-e-verde das casuarinas ao longo do Índico... Os barcos ao longe esperando pela maré ... O meu pequeno barco à vela no Clube Náutico, Os primeiros amores, o convívio com amigos, as aventuras no mangal... Hoje, no adeus, as lâminas deste espelho quebrado retalham mil imagens mutiladas e breves, amanhã desmembradas em fragmentos de memória. Mas por ora, numa teimosia para reter este presente a todo o custo, guardo comigo a dor fantasma que recusa abandonar as partes decepadas desse corpo.
Ao longo da janela do camião que nos transporta com as sobras dos haveres familiares aqui recolhidos, a paisagem converge num holograma de cimento e cinza: areais desertos, praças, passeios, cruzamentos, esquinas, muros e paredes nuas... e mais além, comigo um pouco mais atento: moradias e escolas, igreja e hospital, lojas e esplanadas, galerias e arcadas, hotéis e restaurantes ... Tudo num vai e volta, numa vertigem entre hoje e ontem, som e silêncio, luz e sombra... e ainda num confluir acrescido: retratos de outrora, ressuscitados momentos de inocência e camaradagem, ócio e aventura, paixão e desengano, uma catadupa de imagens órfãs de tempo e lugar, mas reais como as mãos com que me agarro à vida.
Beira, vista aérea, c. 1965 (o mangal em primeiro plano é hoje inexistente)
De novo emerso em reflexões que me arrastam para longe das luzes desta ribalta, revejo-me com minha irmã, de mãos dadas a caminho da escola primária, da piscina do Grande Hotel, no Cineclube antes do passeio dominical na Praça do Município, com o familiar ‘Lar Moderno’, a loja onde tantas vezes visitei meu pai, num dos seus recantos. E com isso, como que num súbito golpe de magia, reaparece o centro urbano, mas desta vez povoado com miríades de cores e gentes alegrando os seus cafés, livrarias, cinemas, correios, tabacarias, bancos e serviços; e para o interior, à medida que o camião percorre os subúrbios, as discretas fachadas de clubes noturnos, bazares, armazéns, e indústrias, passando agora pela ampla frontaria daquele que foi o orgulho de meu pai, a fábrica de colchões e mobiliário ‘Mobel’. Digressão que continua do centro para a periferia, testemunha das concêntricas e ordenadas orbes de europeus, asiáticos e africanos, numa segregada, mas singular harmonia social que retenho como boa lembrança das minhas amizades de escola.
O que foi possível resgatar da casa de meus pais é agora mero fardo de camião que oscila e serpenteia tudo quanto pode, de forma a evitar transeuntes e inúmeros buracos no asfalto. Como figurantes de um filme mudo, intermináveis fileiras de protagonistas caminham agora ao longo da estrada poeirenta, um cenário espartilhado entre enxames de palhotas e um difuso horizonte cor-de-malva. Estamos agora no Alto da Manga, a caminho das planícies interiores do rio Púnguè onde a paisagem se expande passo-a-passo num caudal desordenado de terrenos para pequena agricultura (‘machambas’).
A disparidade das paisagens faz-me acordar para o facto –sem disso ter dado conta– de que deixámos para trás os mangais, as dunas, florestas e ribeiras da orla marítima. Onde a cidade teve o seu passado e do qual depende o seu futuro. E a reflexão de que foi na terra firme deste vasto continente que a primeira humanidade, hoje universal, teve há milhões de anos a sua primeira morada. A beira-mar aparenta ser infindável e abundante, no seu ciclo interminável de frentes frias ou quentes, inconstantes e volúveis como as marés de que se alimenta. Mas é o interior que revela tudo que somos, a vida primordial roubada do mar: complexa, permanente e duradoura. Inspirado pelo mistério da profundidade do tempo que somos, conhecimentos que a história de uma nova nação exige e que o passado colonial ignorou, tornei-me arqueólogo contra a vontade paterna que insistia ser eu o continuador da sua obra. E se nessa teimosia aprendi a melhor compreender as obras de antanho, vejo agora que nada me havia preparado para entender as ruínas do presente. Mas hoje sou simplesmente o ‘filho pródigo’ que regressou a casa sem poder ser achado, porque perdidos são seus pais. Olhando o vasto horizonte, compreendo agora quão terrivelmente leve e sombria é a dimensão humana: o que são três dias de vida senão um invisível grão de areia de uma aventura existencial com três milhões de anos? E finalmente pondero de novo que destino terá esta cidade que lentamente se afunda no seu berço, como o foi o forte de Sofala que de alguma forma a procriou. Numa, como foi na outra, o futuro tem pés de barro. O mangal que vejo ser lentamente esventrado será o fim da cidade como a conhecemos. Como eu próprio, que também me afundo a caminho de um desconhecido desterro?
2. ‘De onde vem a luz e onde mora a escuridão’? (3)
Releio a carta que minha mãe me deixou, escrita duas semanas antes (Junho de 1979):
“Meu querido filho: o Blond dará pormenores de nossa fuga da Beira para o Malawi, Deus o abençoe por tudo que fez por nós. Muitos e dolorosos pensamentos me ocorrem, sobretudo na impossibilidade de não nos podermos despedir pessoalmente; recorro assim a escrever-te esta carta enquanto preparamos a nossa inesperada e urgente viagem, fazendo votos para que em breve ela te seja entregue em mãos. Mais adiante nesta carta explico os porquês da partida.
Alguém disse que no adeus se morre um pouco. Eu asseguro-te que num adeus arbitrário, cruel e injusto se morre um pouco mais ainda. Há momentos de sofrimento que nos fazem lamentar ter nascido. E momentos como este em que ter chegado ao fim dos nossos dias seria bênção. Mas mesmo sem poder enxergar a estrada, é uma obrigação moral prosseguir a vida no caminho que recebemos, com esperança e fé em melhores dias. Malgrado existirmos como um sopro que o tempo rapidamente apaga e não desejemos o mal de ninguém, diz a sabedoria ancestral que a justiça irá um dia prevalecer.
Imaginarás a dor e o quanto nos custa deixar para sempre esta nossa casa. Como Job, tínhamos riquezas, ‘riquezas que desapareceram como uma nuvem’, embora tenhamos sido sempre generosos com todos com quem convivemos, independentemente de raça ou credo. Tudo inútil: agora somos vilipendiados, acusados de servir o mal, do capitalismo ao colonialismo, de corrupção moral e social… apesar de quão justo e arduamente trabalhámos, e quão legítimos foram os nossos bens adquiridos. Durante quatro anos após a independência preservámos a integridade de sempre, e –teu pai– a tenacidade de manter a sua fábrica em funcionamento, malgrado a falta de matérias-primas, a sangria financeira, e a obrigação de pagamentos salariais para centenas de trabalhadores que estava proibido de despedir.
Tudo em vão: os novos governantes vêm os brancos, e particularmente os ricos, como o inimigo a ser eliminado. Certamente no propósito de apropriarem património ‘abandonado’. Mas somos abençoados com boa saúde, filhos e fé. Esses tesouros não serão levados, louvado seja o Senhor. Embora, como bem sabes, temos vindo a sofrer de uma crescente solidão: a tua irmã partiu para Lisboa, tu vives longe em Maputo, todos os nossos amigos foram daqui partindo, e a nossa reclusão foi-se tornando pesada. Completando o círculo do mal, somos agora informados de que os “serviços de segurança” se preparam para prender teu pai, como fizeram com o seu primo do Lar Moderno de Nampula, certamente na intenção de confiscar todas as nossas propriedades. Pelos mesmos motivos a degradante prisão do primo António (obrigado a correr descalço e carregar sacos para bordo de um barco em Porto Amélia) arrastou-se durante meio ano, mesmo depois da Embaixada de Portugal, através de pedido do teu pai, tivesse intercedido. No seu caso, a sua prisão teve lugar logo após uma ‘visita oficial’ de generais da Frelimo à sua fábrica, um tipo de visita que o teu pai também recebeu há tempos na Mobel. Para evitar semelhante destino, ademais agora alertados, obrigam-nos desta forma a uma fuga compulsiva, com duas pequenas malas de viagem e a roupa que levamos vestida. E eu que nunca imaginei ter semelhante sorte enquanto lia pesarosamente o ‘Exodus’ de Leon Uris, e em nossa casa –como te lembrarás– comentávamos o dramático destino dos judeus ...
Não temos outra pátria senão a da nossa língua, não temos em Portugal um tecto que nos proteja, forçados a deixar o país como mendigos. Duplamente traídos pelos novos governantes, aqui como ali. Mas sobretudo pela cobardia das novas elites políticas e militares portuguesas que numa ‘descolonização’ irresponsável e incondicional ignoraram proteger as nações afro-europeias que o país criou ao longo dos séculos, irremediavelmente empurrando mais de um milhão de pessoas para uma forçada diáspora. Da mesma forma, sem as mesmas responsabilidades, a democracia ocidental fecha os olhos aos inúmeros crimes aqui cometidos, nomeadamente quando propriedades são roubadas por nacionalizações arbitrárias, pessoas assassinadas extrajudicialmente por motivos políticos, e muitas outras enviadas para “Campos de Reeducação” de onde dificilmente sairão. Como acusar líderes políticos da oposição de “traição” por terem fundado partidos políticos de expressão democrática, ou manifestado opiniões políticas de forma pacífica, quando o fizeram ainda sob administração portuguesa? Colaboradores com quem e traidores de quê? Pela coragem de defender valores civilizacionais de não-segregação, abertura e tolerância política?
Aqui nascido, a tua opção é legitimamente a de aqui permanecer. A nossa opção foi de conservar a cidadania da nação que nos viu nascer, embora continuando a viver no país onde o nosso coração criou raízes. Mas por elevado preço: nós, assim como muitos outros euro-africanos, fomos abandonados pelos governantes portugueses. Foi-me dito por alguém que ouviu em primeira mão um alto governante responsável pelos Acordos de Lusaka comentar em privado que os portugueses em dificuldade daqui ‘saiam a nado’ ... deixando claro que a solidariedade ‘socialista' está reservada à camaradagem política a quem ele e os 'Capitães de Abril' entregaram as Colónias sem quaisquer contrapartidas. Falando em traição, a História um dia fará o seu juízo.
Meu filho, quando uma desgraça bate à porta há alguém que abre uma janela: Blond foi uma bênção para as nossas vidas. E foi a tua mão –e a de Domingos– que o trouxe até nós: Blond-o-pescador que foi por muitos anos paciente anfitrião das tuas excursões de mangal, até mais tarde começar a trabalhar na 'Mobel'. Um dos trezentos trabalhadores que o teu pai se orgulha de empregar, incluindo o operador-telefonista cego que bem conheces. A filiação partidária de Blond – obrigatória como a de muitos outros– foi para nós vital, informando-nos logo que soube do risco de sermos detidos a qualquer momento. Teu pai organiza agora pormenores da nossa viagem para Lisboa via Malawi, primeiro por terra, e depois de avião com trânsito por Londres. Espero assim que quando receberes esta carta possamos estar já em segurança.
Como sabes o nosso Domingos faleceu há poucas semanas no teu ‘hospital da Bia’. Eu estive com ele nos últimos momentos, quando ele me pediu para te dizer que nunca se havia esquecido de ti, malgrado os anos do teu afastamento de casa. Pediu-me para te lembrar das muitas das lendas que te havia contado, e que todos os Natais lembrasses aos teus filhos a lenda do ‘Rei Mago Africano’ e a sua mensagem de amor. Mais pediu-me que, como tantas vezes quando te tocava o tambor para que vencesses a falta de apetite –mesmo nos momentos em que tenhas de te esforçar por ‘engolir’ o que não queres – que te lembres dele, e marches para diante se esse for o caminho justo. Ele estará sempre ao teu lado, e em momentos certos também presente nos teus pensamentos. O Domingos foi para nós um inesquecível familiar, e com muita dor dele nos despedimos na sua última morada.
Do que soubemos através do Blond, não só a fábrica será nacionalizada e futuramente entregue a um membro do partido, como a nossa casa passará para posse do governo de Sofala. Na impossibilidade legal de possuir duas casas de residência, estou certa de que pretenderás manter aquela que te foi doada pelo teu tio em Maputo. Por isso te direi numa mensagem telefónica –críptica e sem pormenores comprometedores– da necessidade de aqui ‘nos visitares’ urgentemente. Tu melhor decidirás aquilo que queiras resgatar, todos os haveres do muito que deixamos são teus ou para deles fazer o que entenderes. Como verás, excepto algumas de nossas roupas, deixamos para trás tudo o que possuímos. Estamos a providenciar compensações monetárias para os nossos trabalhadores domésticos, montantes que discrimino separadamente. Essencialmente quero que desse dinheiro a recuperar (lê adiante) dividas igualmente pelo pessoal que connosco trabalhou tantos anos. A parte do Domingos entrega por favor à sua família. É com grande tristeza que também deles não nos possamos despedir. De resto já não possuímos consideráveis valores monetários, tendo alguma esperança de que o dinheiro que o Consulado de Portugal na Beira autoriza ali depositar, seja algum dia reembolsado em Portugal. Consta-me que muitos expatriados fizeram o mesmo, mas como sabes a situação de todos os ‘retornados’ (horrível epíteto para aqueles que nunca de lá vieram!) é a de desesperadamente aguardar tais reembolsos, o que entendo não ser fácil, se algum dia se concretizar.
Tenho ainda um outro pedido: que recuperes o dinheiro que deixámos enterrado junto do pé da roseira, no mesmo local do jardim onde costumavas ouvir secretamente a estação de rádio 'A Voz da Frelimo' transmitida da Tanzânia durante a guerra colonial. Embora ignorasses, nós sabíamos onde estavas depois do jantar. As tuas opiniões políticas eram claras nas nossas conversas; e o pai –como te informamos– foi avisado pela PIDE que eles te vigiavam, sobretudo depois das vossas publicações por ocasião do ‘Ano Internacional do Livro’ em 1972! Assim, ‘por deferência ao pai’, esperavam que nós pudéssemos 'reabilitar-te antes que fosse demasiado tarde’..., mas o respeito que temos por ti refreou em nós o desejo de questionar as tuas convicções; em vez disso, como te lembrarás, implorámos-te discrição das tuas ações e pontos de vista. Essa mesma tolerância encorajava o progresso intelectual que desejávamos que tivesses, disponibilizando-te o crédito que tiveste durante o tempo de liceu para os livros que necessitasses obter na Salema & Carvalho, Spanos e Irmãs Paulistas. Tínhamos conhecimento de que muitos dos livros que compravas estarem na ‘lista negra’, mas nunca tentamos influenciar as tuas opiniões: como tu, também nós secretamente desejávamos que o novo Moçambique se tornasse uma pátria tolerante, democrática e multirracial. Estávamos errados, como se verificou depois da independência, mas temos esperança de que este sonho adiado seja um dia realidade.
Como no livro poético de Job que muito me inspira nesta provação em que vivemos, termino a minha carta com muita tristeza e um profundo sentimento de perda. Acredito, contudo, que cada vida é única, valiosa, e numa permanente relação com o que criamos e o que nos cria; e um pensamento que me tem ocorrido e que aqui te deixo: ‘De onde vem a luz, e onde mora a escuridão’? Quando eu morrer, imploro à terra que, por compaixão, não cubra o meu clamor por justiça. Como se escreveu algures no ‘Livro de Génesis’, malgrado o fim de cada vida, não obstante estar a crueldade e a violência espalhada por toda a parte, a vida brotará dez vezes mais forte no final do Dilúvio. (...)
3. Cortinas de Cacimbo (últimas reflexões, Junho de 1979)
De que é feito este palácio de mangal de que me despeço? Uma ilusão do passado, uma utopia, um enigma? Depois do trágico destino de Sofala, será a Beira uma invulgar afirmação da vontade humana, uma singular vitória da fantasia sobre a ruína do passado? A prova de uma paradoxal teimosia? Ou uma sina como a de Sherazade, capaz de adiar todas as mil-e-uma noites um destino predestinado, inventando uma nova narrativa que a liberte da morte? Mas a desdita de Sofala, a grave crise ambiental –transgredidos que são os limites naturais do planeta– e a lenda de Sherazade existem porque o futuro está hoje alcançado: Sofala está perdida, a sustentabilidade por um fio, e Sherazade a salvo enquanto prevalecer a sua inesgotável criatividade.
Beira, Quebra-mar em 1902: a frágil fronteira na ausência do mangal
Um simples encontro pode decidir a vida de cada um. Dois até. Aliás: a existência é esse encontro. A essa comunhão chamamos o sentido do ser, consciência ou destino. Os lugares são feitos desses pequenos milhares de encontros. E de desencontros como é esta partida.
Mas a minha memória conserva a realidade ali vivida, feita para sempre dos nomes que ali inventei. O fruto que nasceu da raiz, a minha cidade: a rua do Marco, o bairro do Vítor Hugo, a praceta da Tété; a alameda da ‘minha’ escola; a avenida da fábrica; o prédio do cineclube; o hospital da Bia...
Desinteressado era, e alheado continuarei, da nova fabricação de monumentos e memoriais: tão bizarros eram os ‘heróis do mar’ da distante pátria como a presente invenção de ‘heróis do mato’ que os substituem. O 'agora' raramente é o bom, porque o bom é unicamente o 'agora' por muito pouco tempo. Apenas o 'sempre' e o ‘bem’ são eternos.
A tragédia de cada adeus não é a perda no momento, mas todas as perdas do futuro. Aquilo que jamais será vivido de novo. Como quando o espelho se quebra: não é só a imagem que desaparece, mas a impossibilidade de ver essa imagem de novo, um candeeiro que se apaga, o final da criação.
Fernando Pessoa reteve como preço de uma vida no exílio a ambiguidade e ‘desassossego’ do existir entre o sonho, a realidade ou se uma mistura delas (4); onde o ’Grande Hotel’ da fantasia projeta imagens como uma lâmpada que procura revelar o mundo, ignorando a realidade que observamos no espelho. Pior ainda, quebrado o espelho e extinta a lâmpada, irrealizável será encontrar de novo o caminho. Talvez essa a explicação para a ruína dos nossos dias?
Um crepúsculo enevoado e frio desce lentamente, enquanto me afasto deste meu primeiro porto de abrigo. Nele não só encontrei resguardo como sonhei novos destinos, recebendo ali as vitualhas de afeto humano que ainda hoje me alimentam: inesquecíveis rostos, admirável bonomia, amor e sabedoria. Assim pude criar a coragem de acreditar na força da verdade, da justiça, do sagrado. Ali nasci duas vezes, no dar e no receber.
Naquela fronteira entre terra firme e matope aprendi o valor da vida; e como criança, na morgue do hospital dos Maias por onde Domingos também passou, o sentido da morte (5). No seu milenar saber, dele ouvi a explicação de que o medo do fim da vida é apenas para quem ignora que tudo é parte de um eterno fluxo de criar e ser criado, que um adeus não é uma despedida, mas uma simples cortina de cacimbo que o sol esvanece no reencontro.
E por fim, uma confidência que me foi agora segredada, uma voz de muitas vozes, daqueles de quem recebi aquilo que hoje sou: ‘Para os que procuram o propósito da vida, a escuridão iluminada é a luz’.
Ilustrações: (1) Sofala em 1902, Arquivo Nacional da Torre do Tombo / Wikimedia Commons; (2) Beira, c. 1970, Postal coleção do autor; (3) Beira em 1902, Arquivo Nacional da Torre do Tombo / Wikimedia Commons
1 A histórica Sofala, via estratégica de acesso para o interior, situava-se a c.30 km ao Sul da Beira. Em 1505 foi ali erigida a primeira fortaleza europeia (e a de Quíloa na Tanzânia) no intento de dominar o comércio regional com o Estado Mutapa (no atual Zimbabwe), anteriormente controlado por mercadores árabes. Na altura da fundação da Beira (1887) Sofala estava já condenado ao abandono devido à acelerada erosão costeira, o insignificante comércio local e a dependência administrativa da Ilha de Moçambique. Do que dela resta (Nova Sofala) para o interior de Manica a c. de 250 km, as planícies encontram as terras altas em Chimanimani, e, mais a Norte, Mutare e Nyanga. Na disputa geopolítica entre Portugal e Inglaterra, o corredor Moçambique-Angola (o ’Mapa Cor-de-rosa’) colidia com o eixo Cabo-Cairo que Cecil Rhodes promovia, conflito resolvido a favor dos ingleses na Conferência de Berlin em 1885.
(2) A nacionalização de casas e prédios de rendimento foi anunciada no dia 3 de Fevereiro de 1976. Os estrangeiros com domicílio no país puderam continuar a ser titulares do seu imóvel de habitação, e todos (moçambicanos e estrangeiros) com direito a uma só casa de residência permanente. Imóveis de estrangeiros que estivessem ausentes por um período superior a 90 dias, sem que para tal estivessem autorizados oficialmente, revertiam a favor do estado . A moradia aqui descrita foi nacionalizada e passou a ser uma das residências do Governo de Sofala.
(3) Livro de Job, capítulo 38, verso 19.
(4) Duas primeiras estâncias ’Não sei se é sonho, se realidade / Se uma mistura de sonho e vida’: in Fernando Pessoa, Poesias Escolhidas por Eugénio de Andrade, Campo das Letras 1995: p. 60; ou http://arquivopessoa.net/textos/63
(5) Tema incluído na narrativa ’Retratos de Infância’