A Última Missa: Segundo Encontro
Ruína do Grande Hotel da Beira e escultura 'A Mão', 2012
... Extrato da última homilia do Padre Ezequiel, em memória de Tomás Fernandes Baptista e de outros mártires da 'revolução'...
‘Vós sois o sal da terra e a raiz do matope: sem vós o alimento apodrece, e sem a vossa raiz o mar tudo arrasta. Vós sois como o pequeno peixe que depois de liberto da força das marés e da traição do anzol tem ainda que enfrentar a voracidade do tubarão. Mas os predadores que se cuidem: há sempre outro e maior pescado, o oceano é vasto e a justiça infinita. Mesmo sem voz a vossa fortaleza de mangal protege-vos; cada um de vós, sobreviventes do Dilúvio, irmandade da mesma pátria.
Assim é como o milho que semeiam: quando a lavra é boa a colheita dará também de comer aos vossos corações. Saibam lançar a semente longe dos parasitas, eles definham sem o vosso alimento. A pedra nunca deu fruto. Não há mal que sempre dure nem banquete que nunca acabe. Meus irmãos e irmãs: palavras como estas foram ditas há 300 anos por um jesuíta como eu, que deste modo condenava a escravidão (1): ontem como hoje, vos asseguro que os servos terão salvação eterna; porque é pelo espírito, e não na carne martirizada, que nos libertamos.
Palavras que em breve farei minhas. Palavras que alimentam meus pensamentos, pensamentos que guiam meus passos, passos que ressoam no longo, escuro e vazio corredor que há duas décadas desembocava na radiante capela deste Grande Hotel, hoje ruína de improvisada prisão. Nas paredes que sobram do defunto esplendor do pórtico de que me aproximo cresce agora um bolor grisalho e fedorento à sombra de ramadas frondosas de um cajueiro. Dos rituais que esta casa de Deus outrora testemunhou, apenas fragmentos do vegetal e do irracional perduram no tempo. Alguém escreveu que ‘Deus quer, o homem sonha, a obra nasce’. Aqui sem Deus, o homem não quis sonhar e a obra morreu. E eu, um anátema na ilusão de poder reanimar o passado numa derradeira missa, numa última missão. Assim é a Pátria adiada, a negação do sonho imaginado. Assim é o país que somos em finais deste milénio.
A leve luz de cacimbo matinal sobre o chão empoeirado acentua a sombra do meu caminhar, enquanto medito sobre os crimes de que serei em breve incriminado: perversão de jovens, traidor que ajudou 'colonialistas' a fugir da 'justiça popular', aquele que insiste em oferecer 'ópio ao povo'. Malgrado todas as acusações, ou por causa delas, estou convicto de que Ele está aqui e agora ao meu lado e que aprova o que faço, seguro de ser hoje necessário –mais do que nunca– reafirmar o sentido do sagrado. Assim possa eu deixar semente de amor e liberdade naqueles que aqui partilham este momento, um raro bálsamo para os passageiros deste ‘Campo de Trânsito’ (2) .
Ao entrar detenho-me sob o esventrado vão de uma inexistente porta, e cerro os olhos para melhor me diluir na penumbra e retomar alento. Por um curto instante respiro a humidade, a decomposição do cimento e madeira podre, a fragância plástica das flores artificiais que sei despontar do jarro quebrado sobre o altar. E numa ligeira prece, apelo para que o amor divino regresse a este lugar, mesmo que na dúvida de ser ouvido, numa incerteza momentânea que recuso admitir. Reabro os olhos para redescobrir o humilde pódio-feito-altar coberto por um imundo farrapo de pano bordado e um fraturado vaso branco, remotos indícios dos antigos requintes de hotelaria. Em meu redor os pesados e mudos semblantes da minha congregação fazem-me evocar por contraste o bem-estar dos visitantes de outrora. Onde estão eles agora? E nós, quem somos nós, os habitantes desta distopia?
Noutro tempo e noutro lugar, até serem proibidos pelo Partido, organizei ritos de iniciação que juntavam grupos de alegres adolescentes em eventos coloridos com bandeirolas, risos e cantos. Uma educação em homenagem aos novos tempos, uma escola humanista voltada para o respeito dos valores da existência humana e da natureza, porque é na escola que o futuro começa. Nesses eventos falava-lhes com paixão de como viver a vida, não para imitar e agradar a terceiros, mas para integralmente realizar aquilo que somos: únicos e, todavia, parte de um todo, singular e inseparável. Dias de crescimento espiritual e intelectual, de amor e virtude. Mas a longa noite da tirania não suporta liberdade e sabedoria. Com a ‘Operação Limpeza’ a era da inocência converteu-se na era da infâmia: escolas foram delapidadas, ‘improdutivos’ são agora compulsivamente levados das cidades para campos de trabalho, por todo lado bandeirolas vermelhas macaqueiam o jargão político da ‘cultura (dita) popular’, ‘um redondo vocábulo’ vazio de expressão (3), e um incansável coral de autocrítica coerciva em nome da ‘pureza revolucionária’. Mas na realidade, na química da produção do ‘Homem Novo’, pouco se cria, muito se perde, nada se transforma.
Como Dante lembrou há 700 anos (4), e antes dele Cristo comprovou numa última ceia, a meio-caminho da vida todos atravessamos uma selva escura, porque direita via não existe senão aquela que passa pela nossa agrura. Desperto destes pensamentos e de regresso a estas paredes, como se de repente surgisse do nada, descubro a pequena multidão que me espera sentada em círculo em volta do improvisado altar; e naquele profundo silêncio adivinho um imanente sentimento de partilha e comunhão, de solidariedade no sofrimento. Talvez mesmo de uma genuína esperança no divino? Suspenso à entrada deste desfigurado templo alguém rabiscou numa placa “Sou os olhos do cego e os pés do coxo”. Inspirado por esse encorajamento e no heroísmo daqueles moçambicanos que hoje irei recordar, retomo os meus passos.
Camiões de ‘noviços’ chegam durante o dia, e outra carga de ‘excedentes’ levada ao cair da noite: vindos do nada e removidos para a perene ausência. Assim partiu Tomás. A ele e a todos que nos deixaram dedicarei esta minha última missa; a todos os filhos que por fim a revolução devorou: Tomás, leal e honrado militar de alta patente, traído e inocentemente encarcerado, torturado até à cegueira e lançado ao mar ainda em vida ao largo da Ilha de Moçambique, dentro de um saco com pedras (5). Pouco tempo antes da sua prisão, e por se sentir perseguido, Tomás procurou-me, e sob juramento reiterou a sua integridade. Ele que havia oferecido a sua juventude à guerra de libertação em nome de ideais de justiça em que acreditava. Naquela ocasião Tomás mostrou-me com orgulho uma fotografia sua que trazia consigo, sentado atrás do seu presidente numa viatura aberta no desfile da vitória em Dar-es-Salaam em 1974. Rezo por Tomás, e com ele, na vida eterna, imploro também pelo Padre Mateus, Jossias, Lázaro e muitos outros Lázaros de nome e sina, como Joana, Uria, Paulo e Adelino; suplico pela ressurreição eterna e pela reabilitação universal dos seus nomes, a serem resgatados quando o século das luzes renascer, e o Direito voltar a respeitar a sagrada lei da vida. Quando a tempestade passar, e a memória de Próspero e de Camões nos liberte por fim da tirania de existirmos como ‘estrangeiros na terra, Lei e nação’ (6). Quando toda a ‘Boa Gente’ puder finalmente ser filhos da mesma Nação.
Tomás Fernandes Baptista no ‘desfile da vitória’ em Dar-es-Salaam, 1974
Na grande cidade prevalece um misto de fantasia e medo, e no estrangeiro a ilusão da imediata vitória da justiça com o fim do império colonial; mas aqui, enquanto o novo poder subjuga os novos ‘condenados da terra’, a solidariedade internacional alimenta os bolsos da nova cleptocracia. Aqui e agora nada parece ser mais real do que o renascer –com outras cores– da cínica ganância e rápido enriquecimento; um passado usado para justificar as novas ‘verdades’; uma ‘nova ordem’ instituída em nome do ‘povo’, e o honesto cidadão mortificado em nome de um falso bem comum. Na essência, o futuro do apregoado socialismo é um bom negócio até o dia em que se esgote o dinheiro oferecido. Entretanto, para o cidadão, estes são dias de um vazio indefinido, de existência anónima, de ‘escuridão ao meio-dia’ (7): quantos irão perecer como vítimas de um regime ilegítimo que comete atos hediondos contra o seu próprio povo? Um regime que para sobreviver inventa traidores, escamoteando intolerância étnica, linguística, racial, social e religiosa? Como podem as democracias ocidentais fechar os olhos a estes crimes? Como é possível que Portugal ignore o facto de cidadãos serem sumariamente executados como ‘traidores’ por terem tido iniciativas em organizações democráticas instituídas antes da independência, ainda sob soberania portuguesa? Que futuras narrativas recordarão este doloroso episódio de responsabilidades históricas mútuas, deliberadamente ignoradas? Porque não é comparado o atual ‘Comunismo Moçambicano’ e o que foi ‘Fascismo Colonial’? Condescendência ‘politicamente correta’ por um ser ‘africano’ e outro ‘estrangeiro’? Contudo a história confirmará mais uma vez que ‘aqueles que não se lembram do passado estão condenados a repeti-lo’ (8): de volta está o conflito armado; ontem como ‘luta de libertação’, hoje como ‘guerra civil’, amanhã como ‘guerra terrorista’ propagando-se em regiões onde a luta armada anticolonial se iniciou há pouco mais de uma década. Agora como desde há muito: um país adiado, uma nação por cumprir, um imaginário ‘Grande Hotel’ como este que piso.
Regresso mentalmente à capela, atraído agora por intensos olhares de espera fixos em mim: naquele santuário suspenso no tempo e no espaço nada mais resta do que este nosso elo de união espiritual; e eu, como sacerdote, um último garante entre vida e morte, da necessidade de crer para compreender o inexplicável, relembrar a beleza do espírito –da arte, amizade e amor– como derradeiro bem, por um momento esquecer a perversidade dos homens... É em momentos como estes que me ocorrem palavras de rara beleza que me inspiram coragem em cruciais momentos de sofrimento e dúvida: ‘A religião é a visão de algo que está para além, por detrás e por dentro do eterno fluxo do imediato (...)’ (9). A religião em que acredito é um saber empírico e benigno, um conhecimento diferente do puro saber físico que a moderna ciência materialista reconhece como única realidade. No futuro mundo pós-materialista triunfará o princípio de que é o espírito, e não a matéria, que determina a existência. Como disse o pai da nova física quântica ‘é o invisível e imortal espírito que contém a verdade’ [e] esse misterioso criador [é] Deus’ (10).
Rompendo o pesado silêncio, ouço minha voz dizer ‘O Senhor esteja connosco’; e a resposta ‘Ele está no meio de nós’ (estará?) ... e começo o meu sermão invocando os mitos da origem do universo, do dilúvio, da vitória da vida sobre o mal: ‘A humanidade foi criada como Ele, e 'Ele punirá o animal ou a pessoa que destruir uma vida humana pois que a lei natural, contendo as normas supremas e universais, foi a primeira fonte da lei’. Continuo ainda argumentando que o arco-íris (que não vejo há muito) é a prova de que a luz, na sua redobrada vida e cor, vence por fim as trevas; procuro ainda eu próprio acreditar na esperança, recordando a parábola de António Vieira de há momentos. E lembro que na Utopia renascentista, curiosamente narrada pelo português Rafael Hitlodeu, o autor lembrava que ‘está a sonhar quem pensa ser rico; quando a morte o acordar ele verá então o pobre que é’ (11).
Defronte de mim olho o singelo copo de água e as escassas lascas de pão duro: a metáfora da criação, tendo pouco mais do que algumas migalhas como hóstias... ‘Todas as vezes que comemos deste pão e bebemos deste cálice, anunciamos, Senhor, a vossa morte, enquanto esperamos a vossa vinda. Celebremos, pois, a realidade da morte que nos rodeia e ressurreição do vosso Filho e de todos os nossos filhos criminosamente assassinados ou encarcerados, oferecendo-vos simbolicamente o pão da vida e o cálice da salvação, de que materialmente não dispomos. Digam comigo: Por Cristo, com Cristo, em Cristo, (...) agora e para sempre. Aguardamos com expectativa a ressurreição da morte e o renascimento do mundo. Pois que assim será um dia. Ámen’.
Um indesejado ingresso naquela cerimónia, uma cortina de poeira vermelha que irrompe pelo eviscerado pórtico da capela, um súbito tumulto causado por um grupo de homens fardados que me obrigam a finalizar: ‘Fui avisado que esta provavelmente seria uma última missa. Não queria acreditar até o ver agora confirmado. Mas ouçam-me bem enquanto ainda posso falar: ninguém prende a água do rio pois que ela deixa de correr aqui para voltar acolá. E quando seca a água que podemos ver, a sua seiva continua a respirar dentro de nós. Assim são as palavras que vos deixo: Na espiral da vida tudo se renova, fluindo em liberdade, liberdade essa que ninguém, jamais, vos poderá roubar’.
Ilustrações: Ruína do Grande Hotel e escultura 'A Mão' de Jorge Garizo do Carmo, 2012, F. Mira / Wikipedia; Tomás Fernandes Baptista, fotografia gentilmente cedida pelo seu irmão Inácio Charles Baptista (Edwin Hounnou)
(1) Padre António Vieira, Sermões. Lello & Irmão, 1959, 15t. 5 v.
(2) Título da obra de João Paulo Borges Coelho, Caminho 2007
(3) Música de Zeca Afonso composta na prisão de Caxias em 1973
(4) A Divina Comédia de Dante Alighieri, Quetzal Editores 2011: 31
(5) Informações recolhidas pelo autor de fonte de informação segura; v. também João Mosca ‘ADN da Frelimo, Poder e Dinheiro’, Centro de Integridade Pública, Maputo 2022, pp.83-84.
(6) Como eram os primeiros mercadores árabes na Ilha de Moçambique; v. Os Lusíadas, canto I, estância 53
(7) Arthur Koestler, Darkness at Noon, Vintage 2005 (orig. Jonathan Cape 1940)
(8) No original ‘Those who cannot remember the past are condemned to repeat it’, George Santayana, in The Life of Reason, MIT Press 1923, vol.1, chapter XII: in https://www.gutenberg.org/files/15000/15000-h/15000-h.htm#vol1CHAPTER_II_FIRST_STEPS_AND_FIRST_FLUCTUATIONS
(9) Alfred North Whitehead, Science and the Modern World, The Free Press 1967 (orig. 1925): pp 191-192 (...) ‘A religião é a visão de algo que está para além, por detrás e por dentro do eterno fluxo do imediato; qualquer coisa de real, mas que, todavia, aguarda ainda ser realizada; algo que é uma remota possibilidade, e, no entanto, um facto claramente manifesto; algo que dá sentido a tudo que flui, mas que dificilmente é apreendido; alguma coisa cuja posse é o derradeiro bem, contudo inatingível; algo que é tanto o ideal supremo quanto a sua desesperada procura.’ (...) No original: ‘Religion is the vision of something which stands beyond, behind, and within, the passing flux of immediate things; something which is real, and yet waiting to be realised; something which is a remote possibility, and yet the greatest of present facts; something that gives meaning to all that passes, and yet eludes apprehension; something whose possession is the final good, and yet is beyond all reach; something which is the ultimate ideal, and the hopeless quest.’
(10) Max Plank 1944, cit. em Iain McGilchrist, The Matter with Things, Vol.2: Perspectiva Press, London 2021: 1362
(11) Thomas More, Utopia, Penguin 2012: xii