Joana: Ao Cair da Cortina
O Palco e a Plateia – Sob o Véu Diáfano da Revolução – Jogo de Dados à Cabra-Cega
Como no mito da criação do universo, cada novo dia combina o incerto e o necessário, a matéria e o espírito. Um eco do eterno e do sagrado, em todas as madrugadas renovado. Hoje é 2 de Maio de 1974, o sétimo dia do sismo político da recriação que ansiava. Por isso aceitei o convite para uma entrevista televisiva. O tema é a revolução de Abril e o futuro de Moçambique. Dezasseis minutos e vinte segundos como protagonista de uma arriscada ribalta, um breve monólogo sobre o drama do nascimento da minha pátria. Isto somente acontece uma vez, raramente na vida que nos calha. E no palco da História eu tenho a boa sorte de estar no abrir deste cenário. O primeiro ato é agora, ao subir da cortina. O meu nome é Joana.(1)
Que fronteira é esta entre a realidade e fantasia? Recordo que no Inferno da ‘Divina Comédia’ de Dante, ele que viveu num mundo entre o abismo medieval e o moderno espírito renascentista, o presente não existe; ali penam as almas eternamente divididas entre os erros do passado e a esperança de um futuro inacessível. Como Dante, também foi esse o ‘inferno’ inescapável que me levou ao exílio. Mas súbito, no êxtase dos cravos de Abril, impera a ilusão de um sempiterno presente; um purgatório que afirma enterrar o passado e instaurar o futuro que queremos acreditar. Mas depois disto o que virá? Existirá porventura esse Paraíso, ou a minha peregrinação de regresso a casa é naverdade um destino inatingível?
Imaginando-me na plateia, antevejo duas figuras –a minha e a do jornalista– na solidão de um pequeno ecrã pestanejando entre luz e sombra, um pequeno universo luminescente e estéril. E a do espetador absorvido num sentir hipnótico de ali estar connosco. O que é a História senão este momento, este futuro em construção, esta oportunidade de um amanhã sem prejuízo de cor, credo ou condição, a nova humanidade? Atravesso agora um gélido corredor, um túnel iluminado num súbito clarão, uma transparência láctea sem espaço-tempo, um instante de eternidade. Alguém me chama debaixo de um arco abrindo sobre um estúdio que parece despertar também ele do sono secular desta pátria-mãe da quimera, cortinas escuras ao fundo de uma parede falsa, uma mão fria que me recebe. Terei finalmente chegado ao ponto de partida?
No decorrer da entrevista vou dando conta que as minhas palavras têm o eco do silêncio, o meu grito de alerta incapaz de acordar o sonâmbulo. O entrevistador olha o papel com as suas notas e as respostas que espera e não recebe. Alguém mais me ouve? Será que não entendem que a velha ordem traz consigo o melhor dos mundos e o pior dos mundos, que por trás de cada sonho existe um pesadelo, que depois da criação do universo foi o oitavo dia que consigo arrastou o mal? Estarão cegos para os primeiros passos de má governação, a ignorância daqueles que nunca governaram, a imoralidade e a arrogância que prenuncia uma nova ditadura? Pergunto (sem resposta) que valores positivos serão salvaguardados, o que será preservado e o que será rejeitado? Que conhecemos (sem o dizer) do rol de assassinatos, prisões, limpezas étnicas e lutas pelo poder político e económico no seio da Frelimo? Que futuro para a nova pátria se a totalidade não for feita a partir de todas as suas partes? E (ainda sem ter a coragem de o dizer explicitamente) como pode a ‘metrópole’ renunciar a responsabilidade histórica de defender as nações que ela própria criou ao longo de uma apregoada ‘portugalidade’ de 500 anos, os africanos, afro-europeus e afro-asiáticos, que agora abandona à sua sorte?
Portugal, inspiradora renascentista da ‘cidade global’ e da narrativa humanista da ‘Utopia’ através do português Rafael Hitlodeu a quem Thomas More deu voz, foi protelando a exigência de uma progressiva autonomia do ‘ultramar’, imperativo que outros impérios melhor entenderam. Assim foi com o ‘Commonwealth’, um hábil renascer de interesses a partir das cinzas do imperialismo britânico. Quando será Portugal narrador e protagonista da sua própria história? Será que a ‘revolução dos cravos’ renunciará a essa oportunidade única, depois de proclamar ser apanágio português o ‘luso-tropicalismo’ e a ‘capacidade de adaptação e simpatia humana’ que Gilberto Freyre e Jorge Dias defenderam ser a chave da colonização? Com o decorrer dos anos o isolamento de Portugal, agravado com a guerra colonial, levou à estagnação económica, em contraste com o progresso das colónias. Estes pensamentos encorajam-me a tentar lembrar o entrevistador que os ventos da mudança sopram agora a favor nas velas do pequeno país que deu ‘mundos ao mundo’, se soubermos afirmar uma universalidade contra aquela que –de novo– é negada por autoritários ‘Adamastores’ que bloqueiam a passagem da modernidade para o Índico.
Receio que o diálogo e as conversações em curso sejam uma farsa. Tragicamente, na fatiga da guerra e num processo em que militares portugueses de inspiração comunista se solidarizam com os líderes da Frelimo, as portas estão abertas para a instalação de um regime autoritário em Moçambique. E para estes todas as outras forças democráticas serão consideradas traidoras logo que levantem uma palavra de cautela. Será a legitimidade da nova ordem política ‘revolucionária’ considerada melhor do que a antiga ‘fascista’, malgrado serem ambas igualmente autoritárias? Irão as democracias ocidentais fechar os olhos ao saque e roubo da propriedade individual, da “nacionalização” de casas, profissões e negócios em nome do “direito” revolucionário? Terá a nova ditadura o direito de fazer tábua-rasa de um território de 26 línguas sem considerações de tribo, cor e credo? Será moralmente aceitável a retirada de Portugal –se assim se chama a presente debandada dos seus quartéis– na vergonhosa modalidade de ‘lavar-de-mãos’ e ‘salve-se-quem-puder’? Sob o véu diáfano da revolução o espectro indesculpável da cobardia?…
Ocorre-me, no rápido murchar dos cravos desta malograda primavera, que esta minha conversa poderá ser a derradeira. A voz da razão e boa-fé são raramente ouvidas até demasiado tarde. Como dizia Schopenhauer, a verdade passa por três fases: ridicularizada, violentamente combatida e finalmente aceite como evidente. Aponto de novo o dedo acusador para o facto de Portugal ter responsabilidades históricas protegendo as minorias nacionais nas suas colónias. Um referendo local deve, portanto, ser indispensável. Mas no presente caos, debandada e irresponsabilidade política, os militares revolucionários portugueses, na mão do Partido Comunista, desertam de uma guerra que ainda não perderam, com o intento geopolítico das colónias caírem sob domínio dos camaradas soviéticos, num oportuno casamento de família. A confirmar esse propósito, nada de momento faz prever negociações isentas e responsáveis.
Tenho dificuldade de olhar de frente para a câmara que segue os meus movimentos, sinto-me já como prisioneira de um futuro que me renuncia: a tela de onde a minha imagem lentamente se apaga dos tubos catódicos do destino, a luz fluorescente que não retém esta figura efémera que é a minha antes de ser engolida pelas ondas da história. Por isso teimo em mostrar este perfil orgulhoso de mulher, filha de uma imemorável África-mãe , berço da humanidade. No cenário sombrio do estúdio, dou-me conta de usarmos a mesma língua, esta ponte que nos une mesmo na ausência, como diria meu conterrâneo Reinaldo Ferreira. Nem nessa raiz comum, nessa valiosa pátria sem fronteiras, sabe Portugal jogar em judiciosas negociações que não fará, um dia a ser apontadas como exemplo de uma indignidade histórica. E olho frontalmente para o meu entrevistador que parece intimidado com a minha presença e os pensamentos críticos que consegue ler nas entrelinhas do que digo. Daí um gaguejar atrapalhado, e se não fosse deselegante, entregar-lhe-ia o copo de água na lembrança do eterno cálice da absolvição
O entrevado jornalista, agora sem mais perguntas, é salvo por um telegrama que inesperadamente lhe é entregue em mãos. Depois de o olhar incrédulo por um momento, ouço-o soletrar solenemente (…) ‘conforme anunciado hoje por Samora Machel em Dar-es-Salaam, a Frelimo inicia amanhã em Lusaka negociações com representantes portugueses para discutir os termos da independência de Moçambique’. Como o acordar de um sonho que não se sabe se realidade ou pesadelo, numa fração de segundo entre a surpresa e indefinida premonição de tragédia, ouço-me exclamar 'Bravo!'
Olho em volta num arrepio, a embaraçante ambiguidade de uma palavra subitamente arrependida, veias drenadas de um querer cada vez mais improvável, uma câmara que me vê num olhar que esmorece. Como sobreviver numa piroga que se afunda na força da tormenta? Como acreditar na paixão do sonho, o sagrado amuleto do amor, a expetativa da alvorada? Que esperança pode alimentar a noite que apaga a cor do dia, onde a cegueira floresce? Terá alguém visto aquilo que eu quis ver: uma réstia de arco-íris trespassando o pequeno ecrã a preto-e-branco, antes do anoitecer?...
O tempo de gravação finalizado, o operador afasta a câmara que roda sem vida, como eu de regresso ao silêncio. Quando nos levantamos, os holofotes que se apagam descobrem as sombras efémeras que somos. Outros projetores iluminam uma ausente ribalta em África, onde um novo muro de ferro se alevanta, onde a primavera é já um inverno distante e frio. Nesse novo palco jogam-se dados à cabra-cega. Aqui, a cortina cai.
Joana Simeão durante a entrevista na Rádio Televisão Portuguesa, 2 de Maio de 1974
Ilustração: RTP Arquivos (foto editada pelo autor)
(1) Joana Simeão (1937-?) vice-presidente do Grupo Unido de Moçambique (GUMO, foi entrevistada uma semana depois da revolução de 25 de Abril pela Rádio Televisão Portuguesa (RTP), v. https://arquivos.rtp.pt/conteudos/entevista-a-joana-simeao/. Nessa entrevista Joana foi porta-voz de uma reforma política de ampla representatividade como forma de uma transição democrática para a independência de Moçambique. Esta esperança foi condenada pela Frelimo, partido de inspiração e apoio soviético. Para uma visão crítica dos erros cometidos por Portugal no processo da descolonização v. artigo de A.J.Saraiva, ‘O 25 de Abril e a história’ in Diário de Notícias, 26 Janeiro 1979. Pouco antes da independência em Junho de 1975, Joana Simeão bem como outros líderes democráticos e mais de trezentos prisioneiros foram vistos pela última vez em Nachingwea, uma base militar da Frelimo na Tanzânia. Joana e outros desses notáveis críticos foram arbitrariamente executados em 1980, os seus corpos por recuperar, e as suas famílias aguardando ainda a dignidade de os poder sepultar. Malgrado o silêncio oficial, alguns dados sobre as execuções têm vindo gradualmente a lume. V. e.g., João Mosca, ADN da Frelimo: Poder e Dinheiro, Centro de Integridade Pública, Maputo 2022, pp. 74, 78, 89, 99 e Cabrita J.M. M’telela — The Last Goodbye in Mozambique, Palgrave Macmillan, Londres 2000 https://doi.org/10.1057/9780333977385_19,