O Grande Hotel: Primeiro Encontro

GH_Narrativa.jpeg

'A Mão', escultura de Jorge Garizo do Carmo defronte do Grande Hotel da Beira (Postal c. 1960)

A Escultura – A Piscina – A Quimera

Confesso que quando para lá caminho, não é o Grande Hotel que eu vejo. É a Mão’ que me chama, a moderna escultura no jardim defronte da rampa de acesso à monumental entrada do Hotel: a radiação cósmica de uma estrela aberta ao céu e a palma da mão onde me escondo. A anatomia do universo num pedaço do meu mundo: trip-trap-trip-trap-trip, cinco plataformas como cinco dedos, até chegar aquele suave berço feito de mosaicos de vidro branco. O Hotel aparece apenas depois desta inocente quiromancia, quando desço e por fim deparo com a sua enorme fachada em forma de meia-lua.

As férias de verão apontam invariavelmente para um destino: depois de dois minutos de caminho minha irmã e eu passamos o imenso pórtico do hotel defronte do largo Artur Brandão, e pelo passeio lateral, junto do restaurante, entramos na piscina. Sem ser parte de inexistentes hóspedes, sem tumulto ou desordem. Tudo a seu tempo. Uma bilheteira, apenas, e um extenso relvado com coloridos para-sóis. O necessário para entrar neste oásis de amplos mas sombrios acessos, um líquido espaço azul entre as mastodônticas paredes de betão armado do hotel e o Índico do outro lado. A piscina é o que resta da fantasia de um projeto megalómano, um proclamado ‘orgulho de África’, um destino turístico de luxo, um casino-que-nunca-foi ou será: 21 000 metros quadrados de um nado-morto capricho. Mas por contraste a piscina é um mundo exultante, a fábrica de sonhos que o monumento de betão desconseguiu, a vida primeva emergindo do oceano adjacente: água morna e de desafios permanentes, do elevado trampolim de saltos ao enorme abismo da ‘parte funda’. Nas suas margens são criados amores e ódios, invejas e simpatias, medos e audácias. Um universo em miniatura.

Diferente do muito que a infância significa, sobretudo na constante presença de adultos, este espaço é para nós uma afirmação de independência. Num subúrbio de famílias relativamente abastadas, outros adolescentes residentes na vizinhança chegam aqui também sós, o que permite um ambiente informal e relaxado. A Beira cresce como destino turístico, sobretudo proveniente da vizinha Rodésia. Mas esse é um turismo pobre, que procura módicos hotéis e sobretudo o campismo na zona do Macúti, afastada do centro da cidade. Família extensas (que não a nossa) encontra-se em grupo nos cafés, cinemas e clubes. Longe desses estritos domínios, a piscina é uma ilha de invulgar liberdade, e um longo dia de lazer facilitado pela existência de um restaurante.

PiscinaGrandeHotel .png

Piscina do Grande Hotel da Beira, c. 1970

Dias de alegria, inocência... e excentricidades, sobretudo no trampolim da prancha. Enquanto o nadar não desperta particular atenção, um ‘salto na prancha’ elaborado com alguma graciosidade é uma mais-valia para muitos de nós em idade de primeiro namoro. Raros acidentes acontecem, mas por isso memoráveis, como aquele em que os meus calções de banho há dias fugiram para o fundo da piscina após um salto bem concretizado, não fosse o esforço de ter de os recuperar antes de poder reemergir... A piscina de dimensões olímpicas tem uma parte bastante funda. O desafio para mim não é tanto o nadar, como conseguir mergulhar tão fundo quanto possível. Traumatizado por um acidente no alto mar quando sozinho fazia vela, sem colete de salvação e a vida por um fio, a profundidade induz-me considerável fobia, orgulho ferido que me é difícil de aceitar. (1)

O Grande Hotel é como que um colorido postal, mas sem realidade própria, uma existência que por vezes sentimos como que daqui-a-pouco registo histórico. Na sua imponência e contraste, este deste castelo de areia é como que uma quimera-a-toda-a-prova: espartilhado entre o frágil mangal e o voraz oceano, entre o um império do passado e a modernidade que vivemos, a sua existência parece estar à partida condenada no tempo. Talvez como a cidade que o viu nascer? Ele parece ter a mesma propriedade dos selos que eu coleciono, efémero testemunho de um lugar e cronologia sem tempo: uma nota enviada para ser lida uma única vez, uma fantasia identificada por um selo sem data. Em contrapartida, à sombra deste estático e vazio corpo, nós somos como que os felizes viajantes de uma nau mágica a caminho de uma qualquer ‘Ilhas dos Amores’. Por isso eu, como muitos outros que ali passamos, vive na profunda dúvida que a piscina tenha alguma coisa a ver com o peso-morto a seu lado.

Assim seria não fosse eu ter aqui acidentalmente encontrado Artur, um dos pescadores do vizinho mangal. Artur ocupa clandestinamente uma oculta cave do Grande Hotel, logo que este foi encerrado. Pioneiro da ruína total em que o hotel se tem vindo a tornar, também ele usa a piscina, mas na calada da noite, para se abastecer de água e se banhar. É ele que me conta que antes de ser hotel, era ali que a sua família consagrava cerimónias aos ancestrais espíritos, para propiciar a abundância do mar. Ainda antes da Beira ser inventada, e porque era ali que os seus antepassados moravam e ali queriam permanecer, o seu pai procurou um outro pioneiro, o impaciente ‘Mafambisse’ (Paiva de Andrade), pedindo-lhe em vão para salvaguardar aquele minúsculo pedaço do almejado ‘caminho de Manica para o mar de Sofala’ (2), a via que permitiu a fundação da Companhia de Moçambique da qual a Beira dependeu de 1892 a 1942, a proprietária do Grande Hotel que foi inaugurado em 1955. Artur disse-me saber ler o futuro, e vaticina a desonra e a destruição do hotel quando a nova nação independente dela fizer um dia uma prisão política: ‘a maldição dos espíritos só acabará quando a ruína do hotel for enterrada’. E promete ajudar-me um dia a ler as linhas da palma da ‘Mão’ que eu tantas vezes trepo, porque ‘nada é insondável e, portanto, tudo também ali se escreve’.

Com Artur, pela calada da noite, visitei o interior do Grande Hotel que ele conhece como suas mãos, encerrado depois de oito anos de funcionamento. Com ele percorri a entrada majestática com a dupla escadaria do átrio ao primeiro piso, o extenso salão de festas, o restaurante, o salão de bilhar, os amplos corredores e galerias envidraçadas, alguns dos 131 quartos e suas opulentas varandas em arco: uma travessia guiada pelo luar refletido no Índico ao lado, no rasto do silêncio fantasmagórico de um passado irremediavelmente breve. Do topo do edifício, o oceano bordejado de casuarinas refletia uma luz de prata. Como solene testemunha, o céu estrelado envolvia-nos na noite morna de nostalgia, assistindo aquele comovente requiem para um esquife anónimo, talvez o adeus ao último dia da minha infância; ou uma derradeira elegia pela adolescência que o hotel não conheceu? A cidade ao longe brilhava num reluzir dourado e vaidoso, com as suas novas lâmpadas de mercúrio. Um pouco abaixo de nós, no parque defronte do Grande Hotel, sobre um alto pedestal, a enorme mão esculpida apontava um dedo acusador na nossa direção, como se naquele gesto o Deus de Michelangelo quisesse lembrar o pecado que foi a quimérica criação daquele palácio roubado ao mangal.

Percebi mais tarde, quando passei a acreditar em correlações em vez de coincidências, que o Grande Hotel representava um espelho quebrado em mil pedaços, uma fantasia refletida em todos que ele tocava: como um universo imaginário, um gigantesco parêntesis entre o seu passado de matope e um capricho por cumprir. E a minha primeira lição de História: ‘Não é possível ignorar o fim das coisas se conhecermos o princípio delas’. (3)


Ilustrações: (1) 'A Mão' de Jorge Garizo do Carmo defronte do Grande Hotel; v. mais recente pormenor na ilustração usada para a novela 'A Última Missa' ), Postal c. 1960 e (2) Piscina do Grande Hotel, Delagoa Bay/ Wordpress.

(1) Vêr narrativa ‘Retratos de Infãncia’

(2) Alexandre Lobato, Breve História da Fundação da Beira, edição mimeografada do autor, Lourenço Marques 1973: 2

(3) Thomas Aquinas, Basic Writings of St. Thomas Aquinas: Volume One, Hackett Publishing 1997: 952

Copyright © 2024 João de Morais. All Rights Reserved.

Website by Walid Sodki. Made in Stockholm, 2020-2021.