Epílogos
Livro I: Ouroboros, o eterno retorno
Como que suspensa no tempo, a paisagem branca defronte do meu terraço tem a luz pálida de inverno agasalhando um céu cinzento e pesado. Todas as manhãs, neste espaço de meditação, revivo o caminhar por outra brancura: a do areal da praia onde permaneço em memória, as águas mornas do Índico, meus pés banhados pela maré baixa onde ameijoas, diminutas línguas vítreas lambendo a espuma, vão-e-vêm no refluxo do mar. Adivinho à distância um horizonte azul e translúcido, que junto de mim se transforma num aroma de maresia ampliada em cada onda, evocando a doce memória daqueles que antes de mim daqui partiram: o eterno recriar de deuses e obras que da morte nos vão libertando
Êxodo, ou a partida anunciada (para minha mãe, profética Cassandra, Beira 1962)
Era o fim do dia e a tua pranteada figura
recortada no silencio da tarde fazia sombra
e as páginas que lias refletiam o anoitecer
porque depois, revendo a fonte dos teus olhos
no imenso mundo daquele ocaso que ao tempo
se tornou verdade
vi uma nova pátria que nascia das cinzas do teu livro
onde a outra te chamava sem retorno
nunca tendo lá estado
até aquele navio fantasma ancorado na estante
retornar a seu porto e nos chamar a bordo
A Criança, o Velho e o Mar (para o Blonde, inesquecível amigo, Beira 1963)
O início da tarde traz a brisa de volta, e as redes de pesca suspensas ao longo do casebre ganham nova vida pelas muitas que vão perdendo. Ao longe ouço o grasnar de corvos falando ao vento. A paisagem é de um líquido reluzente, morno e manso. O pescador por onde passo, sempre o mesmo, é cada vez mais seco e falto. Tudo à vista: a pequena fogueira, a rústica cabana de palha, a esquelética jangada repousando no matope, a roupa velha que veste um corpo seco e rugoso: Tudo gasto pelo fogo e pelo tempo. Ele acena-me agora com uma palavra de apreço e melancolia, porque solidão e sofrimento têm o seu preço. Somente nós podemos fazer com que o fim nunca se acabe, diz-me. Sento-me e bebo o que ele diz com o zelo de uma África no sangue: a natureza tem voz própria que acorda desiguais paixões: o eterno mar diante de nós, na fronteira da savana que fizemos: o oceano, essa indomável matriz do gênese e a fauna domesticada desde que a humanidade descobriu o fogo. A celebração do bem e do mal, lado-a-lado. A universalidade que revive nas lendas que me conta, os mil-e-um-dias que amiúde fazem o meu regresso. Sobre o céu azul-violeta um extenso pontilhado de flocos brancos vai-se alastrando, como manchas em pele de leopardo. Em breve o dia apaga-se no entardecer que reanima a maré da noite, que amortece o instante, que empurra contra-vontade a minha partida. O fluxo da infindável continuidade que vacila por um momento. Tudo tão profundo como a origem do tempo, muito aquém da criação.
O preço da paixão, 1969
No princípio era o vazio um desabitado começo
um anseio dividido entre calor e calafrio
um prelúdio de devaneio feito de sons e instantes
crescentes em contraponto depois em harmonia
um afluente de rio
um murmúrio de voz
uma sinfonia por dentro
indecifrável pulsar de mistério
e encanto
Desse primeiro corpo vi nascer o dia
ansiada visão entre abismo e ingresso
desejo com objeto
frase sem oração
sujeito com verbo
uma penumbra iluminada
pela volúpia que dela se desprendia
Ao acordar da fantasia
(porque a luz não é ausência de sombra
mas a noite que vacila ao meio-dia
quando o zénite esconde o excedente)
ao aceitar a incerteza da existência ser
a totalidade daquilo que calamos
no enigmático império da mente
… Como penitência dessa agonia
suspenso para sempre fiquei
feito estátua de sal que assim não sente
Celebração (para a Sofia, Lisboa 7 Dezembro 1984)
Hoje, a memória de nove anos
acorda-me nos olhos
e a tua imagem de cacimbo
tem o aroma doce da pele fresca
com que me despertas.
Pressinto-te na noite quando ainda não existes
invento-te os contornos num ventre pleno de promessas
e embalo-te nos sonhos de um país que mal começa.
Outros filhos da meia-noite, como tu
esperam em silêncio a madrugada quente e húmida
que faz igualmente fértil a nova pátria que se anuncia
(outros rostos, lembro-me, tinham o espanto do acto nascido
sem esforço ou redenção, a dor de um outro verbo
em que o parto era partir para outra ausência).
Por isso hoje, o momento da ternura que te cria
e a redundância deste colo
que me sobra como um espaço imenso
sem sentido quando tu não estás
se fragmenta em inumeráveis abraços de ternura
que te esperam para além de qualquer tempo
Soledade, Uppsala 1985
Súbito, desperto súbito
entre dois mundos
o espaço é vasto
o tempo imenso
Entendes tu, entendes o que dizem?
que língua falam
que ouves, que assim pensas
idêntico mas diferente?
ou será igual dito de outra forma?
E que palavras são essas que não dizes
mas têm o sabor das palavras por dizer
ou que dirias se o soubesses falar
diferentemente?
E se o dizes mal porque o que sentes
tem outro porvir e outro modo
de ser de estar de persistir
na chegada adiada
ou na partida ainda ausente
inventa, recria outras falas
Sem o dizer, simplesmente
Renascimento (para meu pai, no adeus, Estoril 17 Abril 2007)
Sou o limiar da inadiável despedida
a parte que sobra do cruel sacramento
o advento da semente
a herança aprazada do ocaso
Sou o gene que constesta o refazer
o ensejo suspenso
a dor sem alento
Sou a progenitura eminente
rendida ao desígnio
da folha vacilante na margem
da restinga sem rio
Sou a narrativa criada passo-a-passo
ainda sem enredo
um ondular de nuvem
o soprar do vento
uma madrugada suspensa no intento
Sou o podar da cepa
o afluente ancestral desta África
que hoje desagua no teu leito
Sou o pai, o filho, o destino partilhado
a foz bifurcada à beira-mar
a barca que navega sem rumo
Sou o estreito e o Índico adiante
o trilho sideral de polo-a-polo
na procura da esfera armilar
Sou o hemisfério dividido e o zénite
confluente porque afinal
tudo se encontra no espelho
onde cada imagem é um novo engano
Sou o paralelo e o meridiano
a corrente astral
calibrando o divino plano
Sou o tic-tac perpétuo
o fogo fátuo imaginado
o contraponto a metro
o pranto do imortal salmo
Sou a pausa e a memória dela
que o corpo um dia recordará
quando a voz encontrar o rosto
e a expressão descobrir o gesto
Sou a expectativa da espera
o repouso que não posso
um desejo de viver a véspera
de ser outro ao reverso
como se o presente não fora nosso
Sou o olhar que não mente
e tu a boca seca que humedeço
no desatino do intento
Sou agora o criar em lugar de procriado
a graça no sustento
a língua inflamada no lábio gretado
a boneca que beijas avidamente
sorvendo a vida que te escapa
meu pai de regresso ao berço
Sou como um lamento calado
uma raiz infértil, o fracasso
da tua última ficção
Sou o fruto por colher antes da queda
a ave no seu último voo
o calor da mão como onda que afaga
a pele macia o músculo lasso
que tira a dor e te dá alento
antes que a sombra nos veja
quando a noite se apaga
Sou a palavra a afundar no silêncio
o som desaguando no vazio
da Babel em que te perdes
e eu contigo em sincronia
neste leito sem porvir e sem provento
Sou o documento antigo, o farol de Alexandria
o pergaminho de um mar remoto
messiânico, primogénito
Sou a trindade que une o verbo
a metalinguagem universal
o sabor milenar gravado na pedra filosofal
afagada de canto a canto
onde cada nome, linha-a-linha, se inscreve
com o traçado indelével do teu manto
Sou tudo isso e a força oculta
geneticamente cultivada
inadiável mensagem que me chega
mesmo que teu rosto agora frio
tenha a tua voz silenciada
Na doce recordação de tudo o que foste
e de tudo que me deste
Somos finalmente o que seremos sempre:
outros nos seguem, braço-no-braço
pacientemente completando o laço
da unidade que nos acresce
Manifesto em Tempo de Peste, Estocolmo 2018
Abraça o sagrado na vida:
múltipla e única
enigmática mas consequente
singular, plural, transcendente
Vive o presente, revive o passado
inventa o futuro
com zelo recria esse reencontro:
tudo que a verdade proclama
renasce sempre de novo
Na natureza sente a força
exultante, universal, partilhada
a alegria de descobrir em cada dia
tecidos de permanência
em retalhos do incerto
Questiona o mito e a certeza
reaprende o ser antes do ter:
a transparência do ar, o sabor da terra
a infindável fluência do mar…
Navega contra a corrente
velas abertas, amarras soltas
descobrindo em cada novo instante
novas formas de amar
Usa bem a palavra que constrói pontes
recusa a arrogância da verdade única
a necessidade da conquista
a insânia do território
o império da mentira
Tu, um pedaço de Nós
os que ontem foram, amanhã serão destino
e hoje transitória lembrança dos ausentes:
Abraça todos que o horizonte é breve
acolhe cada olhar, retribui cada sorriso
E, em cada rosto e em cada gesto
consagra o bem como supremo manifesto
Oração, inspirada do milenar ‘Rito de Sarum’, Catedral de Salisbury (1),s.d.
Tu que És sem nome até encontrar
o caminho que começa no teu olhar
Tu, que une o incerto ao saber
sem precisar de lábios ao falar
Tu que ensinas com palavras feitas do silêncio
que em cada peito semeia infinito amar
Tu, a existência que transcende o tempo
onde vive o universo de cada pensar
Tu, imortal Ser, sem advir ou ocaso
meu guia na despedida para teu perpétuo lugar
(1) Rito de Sarum, em memória da outra Salisbury, Rhodesia, que muitas vezes visitei: “Deus vive na minha mente e no meu entendimento / Deus vive nos meus olhos e no meu olhar / Deus vive nos meus lábios e no meu falar / Deus vive no meu coração e no meu pensar / Deus vive no meu fim e despedida” (minha tradução livre do inglês)
Ruínas de Abril, Estocolmo 25 de Abril 2024 (recordando Camões e T.S.Elliot)
Abril é o mais cruel dos meses
o final dos pesados dias de monção
de águas podres e exauridos insetos
de abafados silêncios e nuvens
que súbito enfunam à traição
Abril é um desatino ao alvorecer
o inventar febril do novo fado
a ilusão de despertar desse acontecer
na ‘terra da fraternidade’
ao anoitecer de um anseio inacabado
Abril é o desertar da utopia
no regresso à pequena aldeia lusitana
como se ‘mares nunca dantes navegados’
afogassem de súbito a força humana
das armas e capitães assinalados
Abril é o exultar dos anais do ínfimo país
patrono da cidade global criada
na quimera de doar ‘novos mundos ao mundo’
em portos de abrigo feitos de palha
embrião da diáspora depois ignorada
Abril, cinquenta anos de hinos à pátria-aos-bocados
hoje museu turístico do vetusto império
enaltecendo a memória dos cravos ressecados
no cemitério de Portugal-dos-pequeninos
… e assim ‘down we went’ em exéquias
aspergindo as cinzas da revolução primaveril
‘breeding lilacs out of the dead land’
na consagração das ruínas de Abril
Advir (s.d.)
E nós, quem somos nós senão nós e outros
na vertigem da busca
e outros que sendo eles iguais também
a todos que somos numa única vez
uma única, breve vez
indivisível e única porque
ninguém mais ocupa este lugar e este tempo
inerente a cada um de nós
que não existe tão pouco
outro por acaso
porque o acaso existe connosco e não para além do fim
Mas até lá, entre agora e esse último momento
na travessia de cada procura, a vida fio-a-fio
entretece inconstante
o sentimento de morrer e renascer um pouco
em cada novo instante
Siência do Sentir (Maio 2021)
Sonho hoje com um saber sentido
o saber abstrato e aplicado
o saber quantitativo e qualitativo
o saber material e metafísico
a Siência do sentir
sem fronteiras
O Saber, simplesmente
Livro II: Mandala, ou o todo em cada parte
A Malha do Tecer
No princípio e ainda por fazer
mediram pedaços de instante
e retalhos de trama incerta
Depois, para que pudesse ser
criado sem dor
juntaram o fio condutor ao entretecer
Para invenção da noite e do dia
entre escuridão e anoitecer
desuniram o tempo abundante
da luz ainda vazia
Urdindo a vida por um fio
entre a semente e o fruto
dividido o espaço da ausência
e o abismo do abrupto
nascituro foi de um sopro
e do efémero ao amanhecer:
O poder da criação
é feito de tecidos e no tecer
delineado à perfeição
Onde o Mundo acaba e a Memória Começa (Para Magalhães e para todas as diásporas)
Pudesse eu reviver esse momento
em que partindo para destino predestinado
ao encontro de um mundo de ti ausente
nada mais tivesse que o futuro imaginado
Ali iria morar em pensamento
e quando te encontrasse finalmente
na profecia da chegada, renasceria no intento
de há muito ter ali estado
Quimera
Revejo agora ao longe
antigos espaços
e a tristeza desperta
inventados os primeiros passos
perdidos no itinerário do tempo
Meio século decorrido
entretanto
a leveza que tinha então o momento vivido
fica hoje entre o sorriso e o pranto
no crepúsculo perdido
E no exílio da inocência
que revejo agora como fantasia
sobra o resto do passado
agora vazio de encanto
Anátema
Os espaços que me habitas
quando te penso
longe profunda e viva
no silêncio da memória
porque te não possuo senão assim
distante e fria
nesta noite em que te reinvento
Quando agora sobra do pouco e do resto
a criança que um dia nos teus braços
foi a ilusão da infância
e a mentira criada do incesto
Mesmo assim contudo evoco agora
a maldição de uma pátria
sem existência real
senão na ternura que te faz próxima
no absurdo da recordação
E nesta relação unilateral
de um corpo sem rosto
e de um país arruinado
impossível de perder contudo
resta-me o deserto enfeitiçado
onde de uma raíz sem fruto
eternamente recomeço
Egosfera
Em cada passo te encontro
seja ontem seja breve seja sempre
e pergunto como te encontro
entre o azul e o branco
Sei que te procuro em cada nuvem, em cada canto
e já te revejo no resto dos meu dias
Sabendo que aí estás aguardando o instante
aquele que eu sei, lembro, e lamento não ter tido tempo
para saber que um dia regressarias
e eu ausente para te guardar
como presente mas demasiado tarde
Miragem
Vejo-te nesse espaço de memória que é o tempo
como que ausente, no vazio
e nesse breve encanto, num devaneio
louco e sombrio
a visão que eras acaba no momento
da invenção, do sentimento
que duvido alguma vez tivesses sido
Sei porém que agora, só e perdido
nos braços de um mundo imaginado
novo engano me sustenta
entre a agonia do desejo e a ilusão do teu afago
acredito agora ter-te um dia possuído
sem nunca ter lá estado
Devaneio
Agora que mais nada permanece
entre o nós e o que fica
entre palavra e recordação
o adeus é fantasia
Explico-me:
à partida, do que havia
nada mais temos,
à chegada nunca chegaremos
E assim entre o não ter e o desejar
nesta viagem sem retorno
e sem criação
embora existas
Sem que o saibas
tornas este momento real
Mas tua ausência pura invenção
Poema dos Eternos Amantes (Para Jacques Brel)
As recordações, meu amor, têm sabor
a lembrar uma restinga de paixão
unindo o passado sem presente
ao delírio da solidão
Porque teimar assim no encontro,
se o mar que não mente
divide entre nós o mesmo vazio?
Como acreditar no amor louco
quando as ruínas do desencontro,
são a fantasia que eu próprio crio?
E se te imagino, neste saber difuso,
porquê a ilusão dessa procura
que só dá forma à tua ausência?
Certamente não se vive assim
hoje, ontem, nunca e sempre
quando nascente ou poente
desaguam nesta mesma dor
Procuro porém na memória uma outra luz
o fio infinito, renascente
que une o dedo de Michelangelo
à harmonia do teu rosto
E no cântico desse sacramento
ouço a música das esferas, o rotundo espaço
à nossa volta, abafado e sufocante
de que Galileu nos prometeu
Mas ainda assim não te encontro
mesmo que o planeta rode por fim
e eu com ele, no zénite ideal
de uma órbita excêntrica mas constante
Até te reinventar
na penúria de firmamento
em júbilo de imaginária criação
no eterno renascer desse instante
A Origem do Verbo
A palavra é linguagem antes de ser fala
miragem de pensamento
suposição, imagem
adivinhação, presentimento
O vocábulo é memória
avalia o efeito
imagina o que se cala
esconde dentro o saber
do mal-amado sentimento
que é pensar sem voz
descobrindo, de cada vez
entre o silêncio e o dizer
um novo significado
Desarmonia
A metade que cria
É a outra metade que sou
Quando o instante flui
No reino da fantasia
Nesse hiato, a metade que fui
É realidade imanente
Aquela que respira
No existir, de repente
Entre o meu ser e a sua obra
jaz o pedaço morrente
e o recriar da essência
daquilo que nunca sobra
Do pensar à palavra
Pensar a palavra ainda sem dom
foi linguagem muito antes de ser fala:
no silêncio da imagem
a clarividência sem som
é o vocábulo que se cala
e esse sempiterno criar
do dito por não dito
entre metáfora e verbo
da primeira letra até o dizer
acordou a invenção do falar
como tosca descoberta do sentir
finalmente revelado em universal perceber