Segredos de Natal

Confidência – O Rei Mago Africano – Catecismo ­– A Cidade Prometida ­– A Revelação

Confidência

Deixem-se ser claro: detesto comida. Nem mesmo guloseimas de Natal. Todos se importam com isso menos eu. Eu importo-me com o amor que não recebo. A minha irmã Nini tem as suas bonecas e o meu pai os seus negócios. A mãe, por outro lado, é o somatório de todas as nossas necessidades, menos ela. Melancólica e deprimida. Mas eu felizmente tenho o meu querido Domingos. Sempre ao meu lado quando preciso. Ele advinha todos os meus segredos. Como nosso cozinheiro, ele procura de todos os modos que eu goste da sua cozinha. Mas Domingos não me pode dar todo o amor que eu anseio e necessito. A Nini, a mãe e o pai poderiam, mas infelizmente não o fazem.

Domingos é por isso tudo que tenho por companhia, e eu recuso-me a comer sem ele. Desde que ele toque tambor para mim. Um tambor feito de panela de latão: trrrum, trrurum, trrum... provavelmente como a orquestra municipal que outrora tocava no coreto do Beira Terrace? Domingos toca infatigavelmente num toque contínuo, possante e rítmico. Um por todos, mas todos por ninguém? Domingos toca com corpo e alma. Eu ouço-me rir às gargalhadas. Um pedaço de comida após cada batucada. Para ganhar tempo. Alegremente, marchando em linha. ‘Esquerda, direita, esquerda’. Perfeitamente sintonizados, Domingos e eu. Harmonia em marcha. Sem necessidade de consanguinidade. Em perfeita policromia. Ao contrário da comida: monotónica, enfadonha e morna. Quando estou triste como a mãe, a comida que engulo corrói-me as entranhas. Como o fogo que arde em tempo de queimada, lentamente.

Tenho ainda outro segredo: fui eu que inventei o nome ‘Nini’. Ninguém o usa senão eu. O seu verdadeiro nome é Maria Helena. A par das minhas primeiras palavras, Nini tornou-se uma espécie do meu outro eu. Muitas vezes minha outra-mãe. Pai e mãe são sempiternos, mas sempreausentes. Eu imploro silenciosamente pelo amor que não mereço. Como os mendigos que mais não devem senão agradecer a esmola que lhes dão. Domingos conhece esse segredo, e eu conheço o dele. Ele também anseia por receber amor. Mas encontra-o em lugares errados. Com frequência chega à noite muito tarde, turbulento e falador. Outras vezes chega do bazar excessivamente alegre. Pior é quando Domingos se ausenta de férias, para o ‘mato’, onde imagino viverem as famílias em plena harmonia. Mas no seu regresso vejo-o com olhos avermelhados e exausto. E receio o dia em que ele não volte de todo.

Como que numa jangada encalhada no tempo, agora confinado no meu quarto, ouço a infindável chuvada de monção tamborilando no peitoril da janela: Plop-plop ... Pit-pit... Vooch... E lá fora o cantar ansioso dos sapos em cio. Mas por estranho que pareça, o Natal está à porta. As casuarinas soltam a sua pequena e aguçada semente e a época festiva requer que uma delas seja decorada com grinaldas de fio prateado e tufos de algodão de neve faz-de-conta. Absurdo contraste com as ‘verdadeiras’ fotos de Natal que vejo em revistas mostrando genuínos pinheiros cobertos de neve-de-verdade de um branco cintilante; em vez disso a mãe trouxe para casa uma casuarina de tristes galhos decorados com emplastros de falsa brancura que o crepúsculo escarlate do fim do dia desmascara.

Nos meus livros reinvento indícios de amor que outros inventaram –Enid Blyton, Dafoe, Stevenson– onde realidade e afeto acontece, mas em retalhos. Por inteiro, mais pesados segredos parecem existir sem que os entenda: palavras escondidas em metáforas, diagramas sobre sexo com referências traduzidas em latim. Como aquelas no livro que os meus pais têm escondido no seu guarda-fatos sobre ‘A Vida Sexual (Fisiologia e Patologia)’ do Professor Egas Moniz... Serão as ilustrações que ali vejo a Pedra de Roseta do amor?

Agora a mãe chora furtivamente, sentada na sua cadeira de veludo verde, ao lado do candeeiro de abajur com um friso de gotas de cristal coloridas. O tema musical ‘Moon River’ inicia o nostálgico folhetim radiofónico que ela escuta religiosamente. Vejo agora que também ela tem um segredo: será o amor tão difícil de entender?

Criatividade, curiosidade, coragem: estas são três das minhas coisas favoritas. Ah, e convicção: a minha cidade é a melhor dos mundos possíveis. Meu porto seguro, ancorado em raízes de mangal que chegam à beira do nosso jardim na Ponta Gea, uma extensão urbana que tanto se expande no cimento como se decompõe no matope: uma cidade viva, vacilante terra firme entre um mundo aquático feito de dunas costeiras e pântanos, fragrâncias de maresia que uma brisa quente intensifica. A minha Beira é uma fina fatia de terra abaixo do nível do mar, confinada entre marés vivas e melodiosas ondas de insetos, extravasando com o calor da monção. O respirar de um perpétuo, mas previsível, movimento.

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Véspera de Natal, 1958

Hoje é véspera de Natal. Nini e eu, ainda mal acordados, espreitamos com curiosidade a ampla varanda cercada de rede mosquiteira. Debaixo dos nossos pequenos pés descalços, o chão é fresco. Como muitas das casas tropicais, os seus alicerces –como antigas palafitas– elevam-se sobre pilares para permitir melhor ventilação e evitar inundações, humidade e vermes. Uma aragem matinal arrasta um perfume de maresia e lama, cúmplices aromas de maré-baixa e chuva. Os primeiros raios de luz caiem sobre o pinheiro natalício decorado com azevinho e flocos de algodão, numa luta ingrata contra o tempo para manter algum breve encanto. Debaixo dos seus ramos, sobre o chão vermelho de cimento encerado, vemos finalmente o que queríamos ver desde há muito: um valioso amontoado de embrulhos coloridos. Suspensos na expectativa, trocamos olhares desconsolados dando conta da longa espera até que os presentes possam ser abertos à meia-noite, depois da tradicional ceia de Natal de bacalhau cozido e legumes.

O Rei Mago Africano

O pequeno-almoço é preparado pelo Domingos, a quem visito assiduamente. Nos alojamentos adjacentes à nossa casa sou sempre bem-vindo, por ele e pelos demais empregados domésticos reunidos ao redor de um fogão de lenha onde cozinham Xima (papas de farinha de milho) servido com diversos molhos de caril. Aqui ouço os seus planos para o dia, as suas hilariantes histórias, as suas alegres risadas. Com eles provo imensos petiscos ignorados na residência principal. Domingos adora miúdos (ele tem cinco) e a véspera de Natal desperta nele a vontade de narrar como o Menino Jesus relembra a alegria universal que as crianças trazem ao mundo. Domingos não apenas conta histórias: ele encarna o mito através da sua voz e mimetismo. Como vivendo uma hipnótica fantasia, eu observo as pantominas de luz e sombra que a chama do fogão, sobretudo à noite, projeta em espectros de tons avermelhados e sombras dançantes; ou –como agora– bizarras figuras desenhadas pelos raios de sol filtrados pela frondosa mangueira.

Somente Domingos, com sua voz vigorosa e presença magnética, consegue recriar o enigma da ‘Canção do Pássaro Mágico’ como tributo à inocência da criança africana. O conto que ele hoje relata ilustra que apenas a criatividade infantil pode salvar a comunidade da destruição que o ‘monstro-pássaro’ causou numa pequena aldeia depois do feitiço do seu cantar ter subjugado todos os adultos. Olhando-me intensamente, Domingos diz esta lenda fazer prova de que apenas os puros de coração podem combater a malícia e criar harmonia social. À pergunta de quanto tempo tem esta fábula ele responde que ela é intemporal: as lendas africanas são dádivas que o Rei Mago Africano não pode oferecer em Belém. Ele faltou ao encontro com os seus amigos Baltazar, Melchior e Gaspar, os Reis Magos Árabe, Persa e Indiano. Frustrada essa intenção, isso explica que os africanos ainda hoje estejam a pagar por esse seu erro involuntário. E assim sendo, a história desse desencontro viverá eternamente nas memórias, perceções e expectativas coletivas que alimentam o nosso passado, presente e futuro. Tudo o que fazemos tem consequências: nós somos hoje o que os nossos antepassados foram e o que os nossos filhos serão um dia. Antes de partir pergunto ao Domingos o castigo a que foi condenado o sábio africano pela sua grave falta: ele responde que eu o saberei noutra ocasião, talvez em breve. ‘Porque a paciência é uma virtude’.

Preparo agora as minhas roupas dominicais: calções de cáqui, camisa de linho branco e sandálias. Com pequenas variações este é o meu traje diário, exceto em dias festivos como hoje para a ceia de Natal: blazer azul, lacinho e calções cinzentos, o que me faz sentir ridículo. A mãe leva-me habitualmente à ‘Casa Bulha’ onde a minha roupa é feita à medida, e onde tenho de suportar o ritual de aferição de tamanho aqui e acolá, sobretudo irritante quando ninguém liga às minhas preferências. Eu insisto que gostaria de usar calças compridas, mas respondem-me que apenas calções são ‘próprios para a minha idade’. Assim aguardo ainda o almejado dia em que possa usar as ‘blue-jeans’ que me fariam sentir mais velho e respeitável.

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Catedral da Beira e Escola de Artes e Ofícios, c. 1925

Catecismo

Hoje é dia de catecismo, ministrado num edifício anexo à Catedral Nossa Senhora do Rosário, perto da nossa casa. A caminho, passo primeiro pelo campo baldio com arbustos e árvores de tamarindo que invariavelmente trepo para colher tâmaras agridoces ocultas no interior da dura vagem. Uma pequena recompensa antes de mais outra obrigatoriedade. O encontro tem lugar na 'Escola de Artes e Ofícios', instituição destinada a apoiar jovens menos favorecidos. Reverentemente sentados em rústicos bancos de Panga Panga, permanecemos em silêncio até que a habitual aparição de longas vestes negras entre na sala, onde, durante algumas horas, a fragrância de naftalina da túnica sacerdotal se mistura com um vago aroma de parafina e incenso. E mais uma vez tentamos persuadir o Padre para uma repetição do Antigo Testamento, relatando eventos emocionantes que na realidade podemos entender: a magia do Génesis, a força do Grande Dilúvio (que reconhecemos nas nossas chuvas de monção), o Êxodo que ilustra o destino itinerante das nossas famílias; sem esquecer a empolgante história da Torre de Babel, explicando a razão para os vinte e cinco idiomas moçambicanos, sem contar com a nossa língua materna…

Quando o assunto é enfadonho –o tema agora falado é ‘pecado e penitência’– recorro à fantasia de imaginar outro lugar e outro tempo (sou muito bom nisso): que mau presságio foi o meu batismo nesta catedral, feito no mesmo dia em que minha avó paterna faleceu! e ainda: por que tenho de assistir à catequese quando nunca vi os meus pais irem à missa? A história de hoje é logicamente o da Natividade, e como Deus tem um plano para cada um de nós. Eu entendo a importância do Natal, mas não percebo o papel do Pai-Natal da Coca-Cola (que não pergunto por vergonha, somente crianças acreditam nele). E ainda não entendo porque nos impingem paisagens de neve, trenós de renas e mensagem de paz e harmonia que nada têm a ver com a turbulência tropical desta altura do ano? Quanto à existência de um plano divino, protesto em silêncio, já que o meu frequentemente inclui fazer milhentas coisas que me chateiam, como por exemplo ter de acordar quando tenho vontade de ficar na cama; e ir para a cama quando tenho vontade de ficar acordado. E que Ele me faculte maravilhosos livros de aventuras para mais tarde ser advertido pelos meus pais que como criança não me posso aventurar a explorar o mangal, pescar e andar de bicicleta quando me apetece; e que regresso a casa sempre sujo; e que faço muitos disparates (que a leitura me inspira), e que tomo iniciativas sem pedir consentimento e desobedeço frequentemente aos (inflexíveis) horários domésticos.

Ouço agora que Deus escolhe pessoas ‘como nós’ para realizar os seus insondáveis desígnios: combinando a fascinante retrato da fábula do Domingos e a apaixonada descrição do nosso Padre (sobre José, Maria e o Menino Jesus), a minha imaginação divide e combina imagens de Adão e Eva, dos Reis Magos e Profetas, inspirando o ardente desejo de enveredar em novas excursões de mangal. Por fim (!) o Padre conclui a catequese com dois ‘deveres para casa’ a comentar na próxima ‘aula’: nas ‘Confissões’ de Santo Agostinho ele escreve que ‘O mundo é um livro, e quem fica sentado em casa somente lê uma página’ (vou lembrar esta verdade aos meus pais...). Mas, prossegue o Padre, numa outra reflexão sobre a sua infância, Santo Agostinho lembra que sair de casa sim, mas em boa companhia: ‘Nada é tão digno de censura como o vício; no entanto, para não ser censurado, eu mergulhava ainda mais no vício; quando não me podia igualar aos meus corruptos companheiros, fingia ter praticado o que não praticara, para não parecer desprezível pela inocência ou ridículo por ser casto.’ E dito isto, pedindo para nos levantarmos dos desconfortáveis bancos, inicia o ‘hino’ de Natal: Noite de paz! Noite de amor! Oh, que belo resplendor, ilumina o Menino Jesus! No presépio do mundo eis a luz, Sol de eterno fulgor! Até que enfim: vejo confirmado que a história do Natal branco é mentira, que afinal é o nosso escaldante sol ilumina o divino presépio.

A Cidade Prometida

Desde há algum tempo me interrogo como será o horizonte da cidade visto do alto. Passo discretamente pelo pórtico da igreja em missa, e com o ressoar do Canto ‘É Natal! Glória a Deus no mais alto dos céus, e que os homens encontrem Belém’ inspirando a prosseguir os meus passos, avanço pela penumbra da nave colateral e do solitário presépio ali instalado, subindo os imensos degraus que levam à torre sineira, como que a caminho do Jardim do Paraíso. A luz crua da manhã fere meus olhos, e a minha emoção é bruscamente abalada pelo ruído ensurdecedor do esvoaçar de pombas espantadas. E por fim, de uma pequena janela, descubro pela primeira vez a Beira a meus pés: atapetada em verde e sépia, numa geometria exuberante de caminhos confinados por jacarandás, magnólias, muhangas e acácias, coroados à distância pelo colossal Grande Hotel. Mais distante ainda para Nascente, a silhueta da última língua de mangal e areia remata a paisagem antes dela se misturar nas ondas cintilantes do imenso Índico. Hipnotizado por este mundo inédito e encantador, é como que descobrir e reinventar novas telas de cores e gentes, misturadas numa paleta de cimento e cal que ao longe o azul-turquesa do oceano finalmente engole.

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Vista aérea do centro da cidade da Beira e mangais adjacentes, c. 1970

Percorro o piso no sentido oposto e contemplo a paisagem da cidade interior que conduz à Praça do Município, por detrás do emaranhado dos velhos edifícios mais próximos, do Centro de Cultura e Arte e sobretudo da expansão do Clube de Golfe. Esta é a zona urbana roubada ao mangal, do qual apenas sobrevive o serpentear da ribeira do Chiveve; e ainda mais longe sem a enxergar, imagino a cidade de ‘madeira e zinco’ estendendo-se até o alto da Manga, para além dos subúrbios da Esturro, Matacuane e Munhava, na rota para o planalto Rodesiano. Diversas tonalidades de verde dominam o campo de golfe, entre o escuro e o claro das zonas que levam aos ‘greens’, a última ilha de relva cuidadosamente aparada da série de 18 buracos. Uma das muitas influências coloniais inglesas, também o campo foi construído sobre matope que as marés vivas ocasionalmente submergem; e como retaliação de quem é dono daquele caprichoso domínio, os caranguejos retêm muitas das bolas em jogo nas suas inúmeras tocas, de onde elas são ocasionalmente regurgitadas, para muita alegria dos ‘caddies’ que as revendem aos mesmos jogadores que as perderam. Estas peculiaridades observei eu próprio quando acompanho o meu pai quando ali vai jogar.

Sinto-me particularmente feliz e aventureiro, num um dia pleno de profecias e revelações: ver a árvore de Natal na expectativa de receber muitos presentes, ouvir histórias fantásticas e sentir o perfume da terra junto do fogão a lenha do Domingos, ouvir lendas africanas e universais sobre Belém, saborear o agridoce do tamarindo, ver a terra prometida do alto da torre... O céu tem agora o azul ofuscante do meio-dia, e o caminho depois de passar a minha ‘Escola Primária Eduardo Vilaça’ e os terrenos baldios circundantes, conduz-me à estrada de terra-batida que frequentemente atravesso. O apelo do mangal é mais forte do que eu, numa celebração de festa e de segredos por revelar: todas aquelas coloridas surpresas debaixo da árvore, os secretos labirintos da minha floresta mágica, o mistério por revelar do Domingos... foi ele que aqui me trouxe pela primeira vez de visita a um dos seus amigos. Blond, o velho pescador, vive num pequeno casebre que lembra uma âncora de palha fundeada numa língua de areia e matope que ladeia o mar. Desde então este é o meu misterioso mundo e refúgio da solidão, um reino maravilhoso com feitiços que iria surpreender Alice se algum dia para ali fosse convidada.

A Revelação

Caminho agora pela estrada de terra que percorre a orla do mangal em direção à Ponta Gea, onde a cidade de cimento se dilui na ampla silhueta do Grande Hotel. A minha mão apalpa o bolso que Domingos recheou de castanhas de caju torradas que me ajudarão a vencer a fome ao longo do dia, como ele me ensinou. O pavimento fica alguns metros acima da linha de costa inundada, de momento seca na maré baixa, o sol no zénite, e a brisa da manhã amansada. Enquanto desço para o emaranhado de caminhos ocorre-me que esta estrada liga dois clubes rivais de automobilismo: o ‘Clube 100 à hora’ e ‘Automóvel e Touring Clube de Moçambique’, cada um localizado no extremo oposto desta via esburacada que permite pouco mais do que velocidade de carroça, por onde ocasional (e muito lentamente...) passa a carrinha municipal com o seu ‘canhão’ de desinfestação de DDT para combater a praga de mosquitos. Malgrado o absurdo destas lembranças, sei bem onde estou e a direção que devo tomar durante sete horas de terra firme, entre a segunda maré baixa e a maré-alta do dia. Hoje com um propósito em mente: o de visitar Blond no seu casebre.

Este é uma paisagem viscosa em permanente mudança, que na vazante descobre o que o mar-alto sufoca: pântanos secos, vastas florestas de árvores com raízes descarnadas como longos dedos apontando o céu, onde corvos, íbis e gansos voam incansavelmente. Nesta minha arca de Noé, ressurgem como súbita magia pequenos charcos de peixe miúdo, camarões, caranguejos e os saltadores-do-lodo, os fascinantes paladinos das entremarés: irrequietos peixes de enormes e arregalados olhos, com barbatanas despontando do peito, curiosos guardiões de milhentas galerias de onde subitamente surgem ou desaparecem. Diria serem eles o melhor exemplo do milagre deste anfíbio universo, berço de sereias e mistérios.

Sei bem que esta teia-de-aranha de caminhos pode levar a becos sem saída. Já ali estive, sentindo o terror de ser engolido pela maré a subir. Mas Blond ensinou-me como o evitar, olhando para um outro caminho: o do sol viajando no céu. Bem como para onde os pássaros voam, principalmente o corvo e a gaivota. Naquele sentido fica o oceano, que ouço bem sobretudo em dias tempestuosos, o que não é o caso. Os trilhos mais largos são os que levam à cabana do Blond. No caminho, paro aqui e ali por este caminho mágico onde fico como sempre abasbacado a observar os saltadores-do-lodo, pulando, trepando raízes e charcos, ora dentro ora fora da água, levantando as suas cabecinhas de olhos insuflados, como que com a falta de ar. E em tempo de acasalamento dão enormes saltos no ar à procura de noivado, conversando entre eles com frases tonais de baixa frequência, Ah-Ah-Ahhhh. Imagino que talvez eles sejam os mais felizes seres neste mundo de bipolaridade, sabendo que a maré regressa uma vez saciada a fome e a luxúria, e com ela o ar que respiram.

Encontro Blond a consertar as suas redes de pesca, conversando num intermitente monólogo que somente os solitários e sábios são capazes. Depois de muitas marés, também ele desenvolveu olhos protuberantes, mas no seu caso –distintos das órbitas dos saltadores-do-lodo que se movem como que independentes– eles são desalinhados. Talvez um reflexo da inconstância do mar que o sustenta? Diferente do mar de recreação, o seu é de tonalidades imprevisíveis, de um alegre azul quando sereno e fértil, de um cinzento angustiante quando tempestuoso e pobre. Mas malgrado uma vida difícil e incerta, Blond é sempre cordial. Ainda mal chegado e já me diz que sou bem-vindo num timbre de voz aprazível. Respondo dizendo que me parece ele estar mais magro desde a última vez que o vi e ele resmunga que as marés de verão só trazem peixes de má qualidade. Quando ele pergunta sobre Domingos eu informo que hoje vim só: na noite de consoada há muito que fazer em casa.

Duvido que no calendário de Blond exista Natal. Para ele toda a celebração coincide com boas marés e boa faina. Mas do pouco que ele tem ele oferece, como agora quando me convida para o almoço, certamente a ser feito com sobras de peixe seco e farinha de milho. Tudo o que ele possui está à vista: velhos utensílios de cozinha gastos pelo fogo, uma pequena fogueira ao lado da rústica cabana de estacas e palha, a esquelética jangada repousando no matope, a roupa velha que veste um corpo seco e rugoso. Não tenho coragem de lhe falar do nascimento de Jesus ou do Rei Mago Africano que nunca chegou ao presépio. Lembro-me da castanha de caju que trago comigo e retiro um punhado do meu bolso para que ele adicione ao caril de peixe que me oferece, antes de me sentar a seu lado junto do lume. Como sempre, olhar o fogo convida ao silêncio, e com ele o som de um suave resfolegar das ondas sobre dunas. Tempo de paz, tempo de amor. Palavras que lembram o cântico de Natal, mas mais propriamente aquelas que recordam o pobrezinho que nasceu em Belém.

O início da tarde traz de volta a brisa, e as redes de pesca dependuradas ao lado do casebre ganham nova vida pelas muitas que perderam. Ao longe soa o grasnar de corvos em disputa territorial. A paisagem é de uma liquidez reluzente e morna. Mesmo Blond, depois de nossa frugal refeição, é subitamente mais falador, embora com um tom de nostalgia: solidão e sofrimento têm seu preço. Sento-me e escuto o que ele diz com atenção e respeito, como fazem as crianças africanas. Blond examina o seu longo percurso de vida dividida entre a savana e o mar, lembrando que tudo na natureza tem voz própria e acorda diferentes paixões. Como o oceano é indomável e desperta um amor profundo como ele; e porque decidiu abandonar a savana quando percebeu que tudo ali estava subjugado à vontade humana. Apenas os animais selvagens são ainda genuínos. Por isso, revela-me, o Gnu tem esse nome devido à a sua estranha mescla de cavalo e boi, para nos lembrar que Graça, Natureza e Universo nem sempre estão de acordo. Os seus chifres curvados para dentro (como parênteses) demonstram uma vida passada entre a pobreza e a abundância, que os obriga a migrar sazonalmente para evitar o esgotamento da terra.

Blond diz-me que o Domingos lhe falou da minha eminente visita. Domingos pediu-lhe para me lembrar que o tempo de festa é sempre breve, de tudo ser uma infinita sequência do bom e do mau. Que devemos evitar a arrogância de exigir o melhor, o mais fácil, o imediato. ‘Menino, como Domingos diz, a vida é como uma cebola: depois de cozinhada a comida fica boa, mas antes disso, choramos ao descascar’. Diz-me mais: ele e Domingos decidiram ser hoje um dia de prova, fazendo-me esperar por uma resposta à minha curiosidade sobre qual o castigo reservado para um importante enigma da sabedoria africana: o segredo que Domingos deliberadamente não me havia revelado hoje de manhã. Blond confirma que a lenda do Rei Mago Africano é contada todos os Natais às crianças da minha idade, como uma espécie de rito de passagem: Deus tem um plano para cada um de nós. Mas a decisão de faltar ou a comparecer a esse encontro. (E o amor, de onde vem?) ... De novo interpõem-se o silêncio entre nós, que me deixa suspenso numa expectativa sem resposta.

Sobre o céu azul-violeta um extenso pontilhado de flocos brancos vai-se alastrando, como manchas em pele de leopardo. Em breve o dia apaga-se no entardecer que reanima a maré da noite e que obriga a minha partida. Como diria Blond, o fluxo da infindável continuidade. Tudo tão profundo como a origem do tempo, muito antes da humanidade nascida em África, bem antes do berço de Jesus, quando o Rei Mago Africano foi castigado pela sua ausência. As revelações do dia emocionaram-me profundamente. Como o descascar de várias camadas da cebola do Domingos... elas deram-me esperança e fé, mas de alguma forma também reavivaram solidão e nostalgia. Com lágrimas nos olhos, sem palavras, levanto-me, curvo-me e baixo a cabeça numa saudação respeitosa antes de me retirar, apenas para ouvir a voz suave de Blond: ‘Olha bem nos seus bolsos’... Assim faço, até descobrir um pequeno bilhete que Domingos havia ali escondido. Nele leio: ‘Nunca houve um castigo, apenas um propósito: o de semear o Amor, recordando em todas as lendas por ele inventadas que nunca estamos sós em redor da fogueira da vida, onde juntos vencemos o mal com o bem. Essa mensagem de amor que hoje partilhamos é a prenda que ele nos deixou. Feliz Natal querido menino.’


Ilustrações: (1) Arquivo do autor; (2) Catedral da Beira e Escola de Artes e Ofícios, Postal c.1925 e (3) Vista aérea do centro da cidade da Beira e mangais adjacentes, c.1970,  Mozambique-Postcards.Blogspot.pt 

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