Sementes do Destino

Atlas, o Agente Acidental – A Quadratura do Círculo – A Esperança Em Tempo de Peste

(Em memória de Ruth First, 1925-1982; Aquino de Bragança, 1928-1986; e Fernando Ganhão, 1937-2008)

A primeira vítima da tirania, na ilusão de mudar o mundo, é não ter nada mais em que acreditar. A segunda é a morte da imaginação, da metáfora e do mito, das criações do espírito. A imaginação vive lado-a-lado com a realidade e o criar; a ilusão como simples doutrina e como véu da fantasia. Destino e fatalidade são as suas derradeiras vítimas.

1. Atlas, o Agente Acidental

Uma charada conspirativa em cenário decrépito: um bar de hotel fedorento e escuro em Joanesburgo, África do Sul. Os personagens da farsa sentam-se numa mesa puída, colocada em um canto disfarçado da sala. A conversa é feita num inglês de carregado sotaque afrikaans, com uso frequente de interjeições nessa língua local. Data: 7 de janeiro de 1979.

JM: (jovem tímido, puxando uma cadeira feia e volumosa) “Sr. Vorster, presumo eu?” (Aperto de mão, num gesto gélido, mas firme)

Vorster: (um agente do Departamento Especial da Polícia, de ar gasto mas arrogante porte, envergando um fato escuro e surrado): “O próprio, e bem-vindo à Zuid-Afrika, à terra da fartura” (piscando um olho estrábico e revelando uma dentição de um amarelo repugnante) …” vamo-nos aqui sentar e beber um copo, okey? A guerra pode esperar…”

JM: “Como soube que eu ontem cheguei de Maputo? Como soube do número de telefone dos tios de minha mulher? E, sobretudo, porque me convoca para uma entrevista quando tenho um visto válido para visita de familiares?”

V: “Ag homem, não seja pussie [maricas] (exibindo com orgulho um dístico oficial da polícia) Aqui tem... agora escute-me: sou eu que faço as perguntas e você responde, okey? E não se preocupe: eu não vou tenho rodeios, portanto fale direito, não seja dof [palerma] e não me venha com kak [merdas]! De resto até gostamos que você esteja de visita! Mas para que saiba, mesmo contra sua vontade, nós podemos fazer de si o que entendemos! (Longa pausa de forma a aumentar a expectativa) … olhe para esses bastardos do ANC – para que você saiba o que nós sabemos – e diga-me se não percebe bem o nosso problema?!”

JM: (olhando por um momento para um dossier aberto com imagens e textos sublinhadas a vermelho, estendido sobre uma toalha de mesa engordurada, sentindo-se intimidado pela rudeza e arrogância do agente): “Se sabe tanto sobre mim, também deverá saber que sou um arqueólogo. Só me interessa a ciência, não a política! Já ouvi falar de pesquisadores estrangeiros a trabalhar no Centro de Estudos Africanos, mas não contacto com eles.

V: (ignorando deliberadamente a informação, dirigindo-se a um empregado): “Ag, mamparra [idiota], traga-me uma cerveja; e (agora olhando JM) e talvez uma Catemba [cocktail de Coca-Cola e vinho] para o nosso laaitie [jovem amigo]”?

JM: (anuindo com a cabeça) “Obrigado”

V: (agora um pouco mais ameaçador): Boa! Deixemo-nos de merdas e conversa fiada: você ajuda-nos, e nós retribuímos, lekker hein [porreiro, não é?]? NÓS sabemos que você está aqui para tratar a sua esposa, ela está doente e os vossos médicos cafreais não a podem ajudar, certo?”

JM: (agarrando com firmeza os braços da cadeira, fazendo um esforço por manter as boas maneiras)” sim, infelizmente uma doença rara, e os nossos médicos – qualquer que seja a sua cor, o que não me parece relevante – não têm meios para a tratar (e acrescenta, num apelo a uma eventual empatia) ..., mas também estamos à espera de um filho, sabe?”

V: “É por isso que estamos aqui, meu caro! Para ajudar a sua família a crescer, sem falta de pão, carne e Caldo Verde… mesmo que toda a comida tenha sido levada para Portugal, agora que os malditos comunistas tomaram conta, hein?”

JM: (curioso) “o que quer dizer com ‘ajudar’”?

V: “você ajuda-nos, e nós retribuímos, percebe? ... Você fornece informações interessantes sobre os seus camaradas maaifoedie [sacanas] e nós depositamos boerewors [salsicha sul-africana] na sua conta bancária em Jo'burg, que abrimos para o efeito. Fácil, bem dankie [muito obrigado]!

JM (surpreso, mas contido, quase deixando cair a bebida) “Repito, eu... eu sou um investigador; Não faço nem entendo de política… (mas tendo em mente um filho que vai nascer, e defronte de si um sinistro agente) … e não sei de facto que informações poderei fornecer… tenho que pensar sobre o assunto”

V: “Não precisa de pensar muito, mas rápido, para que você e a sua Choty goty [linda menina] possam aqui voltar em breve! E verá como é bom ter dinheiro de verdade no bolso. Sem isso não há compras no mercado negro nem nas vossas lojas especiais para a nomenklatura, hein? Você gosta de preto, mas com estilo, não é boykie [menino janota]? (Puxando ostensivamente de um cartão de visita, como se fosse lançar uma última cartada numa mesa de jogo): Aqui está o meu contacto. A partir de agora identifique-se como 'Atlas', nenhum outro nome, ok? Sempre, mesmo em Maputo quando o nosso pessoal entrar em contato consigo. (Agora olhando com um olhar fixo e funesto) E para que você saiba, estamos especialmente interessados que tenha debaixo de olho esta sua camarada (apontando o dedo imundo para a fotografia de Ruth no dossier aberto, antes de o fechar). Para ela, organizaremos um belo braai [grelhado]…”

Maputo, 8 de Fevereiro de 1979: O agente do Serviço Nacional de Segurança Popular (SNASP) vestido de impecável fato safari, pergunta-me espantado ‘porque é que não aceitou a proposta?’, como se tudo seja um joguete de espionagem. Agora sentados no meu gabinete, minha vantagem, ‘território’ relativamente seguro. Penso novamente no que acabo de descrever, que desejo seja pela última vez: ‘a pesquisa científica é a minha paixão e trabalho, não o mundo oculto dos serviços secretos. Embora membro do partido (mais por obrigação do que por gosto... sem o dizer), longe de mim poder agir como agente duplo’. Estou certo, no entanto, de que o Serviço Especial de Inteligência da África do Sul terá já informado um dos seus contactos locais sobre o interrogatório a que ali fui sujeito; isto com o intuito me criarem problemas, depois de perceberem –pelo meu silêncio–ter ignorado a sua proposta. Mas esta é suspeita que não revelo, uma vez ser mais prudente assumir o papel de néscio, ingénuo e inútil académico.

O agente SNASP (num sorriso rasgado): ‘Ouça bem o que eu acho que devemos fazer: você vai confirmar que aceita ser o Atlas deles, e nós contamos consigo como agente duplo. Atlas é de facto um nome muito bom! Você será um dos nossos guias com o mapa que nos levará a caminho da vitória! Somente tem de passar desinformação que nós preparamos. Eles são pessoas inteligentes, mas nós estamos bem treinados pelos nossos camaradas da Stasi da RDA! Eles conhecem bem a universidade e outros organismos do estado, esses alemães são ainda mais inteligentes!

Sorrio discretamente, enquanto penso noutras metáforas e trocadilhos: ficaria surpreso se o agente (que não se identificou com um nome) soubesse do outro ‘Atlas’, o titã rebelde da mitologia grega. Dando conta do seu amadorismo, e na minha aversão a jogos de poder, decidi que – Atlas ou Apolo – não irei carregar aos ombros nem o firmamento nem o país das maravilhas. Para ele, a mundo da espionagem– feito de fantoches e quimeras – parece ser tão irrisório quanto ‘A Vida de Brian’ dos Monty Python: “Vindos do nada, para o nada voltaremos. O que perdemos? Nada!" … este agente claramente não tem nada a perder.

Enquanto conversamos, e depois da menção da Stasi, recordo que tudo indica que 'filósofos' da República Democrática Alemã venham a organizar a primeira 'Faculdade de Marxismo-Leninismo' onde decerto serão ‘docentes-convidados’; bem como cúmplices do destino de Joana Simeão e outros opositores à Frelimo, encarcerados num campo de concentração no Niassa. De resto, o mesmo espírito de mordaça, numa versão mais suave, vai-se fazendo sentir no nosso mundo académico: a disciplina comunista não aceita espíritos livres ou críticos, os intelectuais moçambicanos têm de aprender que o credo marxista exige necessariamente uma hierarquia apostólica, como escreveu Arthur Koestler –que para seu mal muito aprendeu sobre disciplina partidária(1).

Terminada a nossa breve discussão, novas preocupações me assaltam: será a minha "rebelião" tolerada, ou entendida como uma extravagância passível de punição? Será a minha inflexível posição um risco de deportação para o Niassa? Não espero, contudo, que o agente possa entender o meu ponto de vista. Devo, portanto, contactar de novo o Reitor, a quem já procurei uma vez logo após o meu regresso, desejando que ele no seu bom-senso reconheça o problema e exija à SNASP que me deixe em paz. Estes são meus últimos pensamentos antes de abrir a porta ao pretensioso agente, que assegura voltar a contactar-me ‘em breve’.

2. A Quadratura do Círculo

A reitoria fica na Praça Sete de Março, o berço da velha cidade: edifício na esquina de poente, com o torreão angular rematado por um zimbório. Muita história ali se junta: ampliado em 1953 para sede dos ‘Estudos Gerais Universitários’ (fundados em 1962) é também a sede do Ministério de Indústria e Comércio, onde meu pai frequente e desesperadamente se deslocava até há pouco tempo para tentar obter direitos de importação de matéria-prima para a sua fábrica na Beira, agora nacionalizada(2). E nas suas traseiras, na Rua Consiglieri Pedroso, fica o prédio d’’O Lar Moderno’ do qual meu avô e meu tio foram sócios fundadores. E muitas outras referências familiares ocorrem, mas pouco relevantes para o caso.

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Edifício da antiga reitoria da UEM, visto do interior da Fortaleza de Nossa Senhora da Conceição (erigida em 1782)

O Reitor é um importante cargo de nomeação do Presidente da República Popular de Moçambique. Uma instituição nascida no mosteiro, antes de transitar para o mundo secular da ciência renascentista, a figura do Reitor é aqui particularmente dignificada por édito presidencial: a confirmação da expectativa da instituição ter o papel de farol do ‘socialismo científico’. Fernando Ganhão, membro do comité central da Frelimo, antigo professor da escola da Frelimo na Tanzânia durante a luta armada e docente de história de África contemporânea do meu último ano do curso, personalidade de cultura universal, é generoso no receber sem atender às linhas hierárquicas do poder. Fico-lhe sempre grato por isso, pelo seu ativo apoio à investigação arqueológica, e por ele me ouvir, não fazendo eu parte da 'nomenklatura'. Com ele partilhei a preocupação do grau de detalhada informação estratégica e o interesse sul-africano em atividades de colegas do Centro de Estudos Africanos. De acordo com o meu pedido, e as hierarquias do poder, ele assegurou-me ir providenciar para que alguém do SNASP me contacte para um debriefing’. Minha preocupação – repeti – é parecer-me mau presságio o interesse sul-africano nos académicos do ANC.

O Centro de Arqueologia ocupa parte do primeiro piso do edifício do antigo Instituto de Investigação Científica de Moçambique. Agora sob a direção de Aquino de Bragança, diretor do Centro de Estudos Africanos (CEA), o seu quadro de pessoal tem sido consideravelmente ampliado com académicos estrangeiros, sobretudo depois de Ruth First ser nomeada diretora de investigação. Aquino e Ruth visitam-me no meu gabinete e acordamos que o mesmo transita para a Ruth, e o Centro que dirijo passa para o rés-do-chão onde de resto havíamos inicialmente emergido como parte do extinto Departamento de Ciências da Terra.

Todo o cientista espelha a visão do mundo que tenta descrever. ‘África’, no entendimento dos sociólogos e historiadores do CEA, não se conforma com a complexidade, universalidade e extensão temporal do evento arqueológico. Para aqueles, a ordem sociocultural tem fundamentalmente uma base económica, os ‘modos de produção’: o grau de imprevisibilidade, o percurso errático no colapso e reemergência de civilizações, é dificilmente enquadrável no processo linear que ‘por fim’ leva à vitória do proletariado. Uma abordagem ideológica do ‘materialismo dialético’ contrária ao entendimento da complexidade de transformação de sociedades ao longo do tempo. E com isso claramente desprezando todo o passado que não justifique o presente. Enquanto uma vê a sociedade como uma arena de conflito de classes estratificadas, a outra entende que essas diferenças emergem de um processo universal, mas singular, de adaptação e integração da condição humana como resposta às complexidades do meio físico e cultural. A profunda temporalidade e as ferramentas multidisciplinares de investigação arqueológica exigem uma visão holística da história, que o marxismo evita. O estudo do Ser e do que existe, nessa intrínseca relação (a chamada Ontologia), tem em conta a existência de uma realidade que reflete propriedades universais, mas sempre incompleta. O papel da ciência é de aproximação –através de hipóteses e teorias– dessa contingente realidade, que no nosso caso revelam distintas visões ‘africanistas’. Diferenças que nos levam a uma progressiva alienação do CEA, e à necessidade de estabelecimento de um novo Departamento de Arqueologia e Antropologia anexo à Faculdade de Letras.

Hoje à distância vejo mais distintamente os motivos daquela cisão: a urgente necessidade de criação de uma teoria social ‘dialética e revolucionária’ requer o desenvolvimento de uma metodologia para a qual a ciência, e particularmente a História, é uma mera construção social. A palavra ‘mito’ somente adotada na língua inglesa em 1830 (3), explicará a dificuldade de aceitação, no seio da escola anglo-saxónica, da tradição oral africana como fonte de conhecimento, uma vez que a semântica implica naquela língua o sentido de alegorias, estórias inventadas: entender o saber como conhecimento empírico é algo de relativamente tardio na etimologia inglesa. Talvez daí uma abordagem mais crítica do que criativa? Estes diferendos ilustram o cisma intelectual entre uma sociologia política que procura representar o ‘mapa’ da realidade social como modelo (a transformação de sociedades ‘tradicionais em operários rurais) e por outro aquilo que inspira a arqueologia e antropologia: conhecer os agentes naturais, socioculturais e seus ‘territórios’ ao longo do tempo. Aquilo que une, não aquilo que fragmenta.

Aquino de Bragança, ávido leitor enciclopédico, brilhante contador de histórias, graduado em Física em França e com uma forte vivência anticolonial, conciliava numa multifacetada personalidade os paradoxos da nova Física quântica com a reflexão metafísica da ‘quadratura do círculo’ (que frequentemente lembrava), numa síntese de notável sensibilidade em estratégia geopolítica. Com Aquino, nas nossas conversas semanais de ‘despacho’ administrativo, refletíamos sobre as razões das desencontradas metodologias de trabalho no nosso seio, diferenças que ele dizia serem mais de ‘croissance’ que de ‘connaissance’. Por outras palavras, na elegância e candura intelectual que ele cultivava, uma lembrança da necessidade coletiva do ‘crescimento’ da razão. Mas suspeito ainda, uma caridosa referência à imaturidade da nova ‘escola’ arqueológica que tentávamos estabelecer. Hoje lastimo não o ter interrogado sobre o porquê da minha geração (como eu o sentia) ser emocionalmente mais antiamericana do que pró-soviética. Aquino corporizava a milenar sabedoria para a qual o conhecimento é em grande medida uma virtude espiritual, uma forma de estar no mundo; um multifacetado, caloroso, iluminista. Cultivando a oralidade, a intuição e o diálogo platónico, talvez no futuro a ciência política moçambicana dê conta de ele também ter sido, como Isaiah Berlin, ‘um irracional romântico durante o dia, para invariavelmente retornar ao 'Século das Luzes' ao anoitecer’ (4).

O realismo visionário de Aquino, o seu talento de síntese jornalística –de prática social e política mais do que de monografia académica– pareciam amenizar a tendência autoritária dos investigadores do CEA. Como observador relativamente afastado da direção científica de Ruth First, interrogava-me como era possível conciliar a tradição ‘continental’ (i.e. liberal) de um e o determinismo histórico de outro. Vivíamos em universos paralelos, mesmo que juntamente empenhados numa prática política e pedagógica ao serviço do ‘homem novo'; no entanto divididos pela nossa convicção de poder compreender a realidade a partir de fenómenos naturais previsíveis (o contexto físico do ‘terreno’ arqueológico), através de metodologias essencialmente enraizadas na história das ideias, no pluralismo genuíno dos agentes sociais, e em conflito com o direito moral da criação compulsiva de 'sociedades perfeitas’.

3. A Candura em Tempo de Peste

Maputo, 17 Agosto de 1982: um dia de confraternização pelo êxito da ‘Reunião de Peritos sobre Problemas e Prioridades na Formação em Ciências Sociais na África Austral’, e o inerente reconhecimento do progresso académico do Centro que Ruth dirige. O melhor da geração de Mandela aplaudindo o futuro em construção. Um apelo de Aquino ao ‘debate sem fronteiras’, mas que Carlos Cardoso (em editorial do Noticias de 13 de Agosto) lembra de ser também, como Samora Machel reclama, o estudo do ‘materialismo histórico’ na África Austral no quadro da evolução da sociedade moçambicana. O relembrar das barreiras, das académica às políticas. Mas para Ruth, desde há muito uma pária, a fronteira do desterro esboroa-se hoje um pouco mais; e em seu lugar uma pequena, mas sólida parede é adicionada ao lar que ela constrói no país de adoção, onde a sua obra faz diferença. Uma ilha de esperança no coração do Índico. Um renascer em tempo de peste.

Os ideais e convicções de Ruth estão profundamente enraizada em valores familiares(5): uma nova África multirracial, socialista, justa. Um passado que cresce não na simples procura de felicidade, mas no significado que se encontra para além do sofrimento. Diferente de muitos intelectuais que se escondem na dissimulação de atitude e aparência, atores de um teatro de costumes para proletários, Ruth traja com elegância e orgulho no seu charme. Sem símbolos de poder que a tentem, o conhecimento científico é a segunda aspiração do seu mundo. O primeiro é da fraternidade universal, a diversidade espiritual, a pluralidade do belo.

Mas como todo o sonho, o trilho é longo: um ano e meio antes, um grupo de forças especiais sul-africanas invadiu e assassinou 12 membros do ANC num subúrbio de Maputo. Pouco depois desse evento, num breve e casual encontro com Ruth e seu marido durante o intervalo no cinema Gil Vicente, comentamos o acelerar dos conflitos regionais e iminentes riscos, incluindo aquele que a minha ‘entrevista’ em Joanesburgo havia suscitado. Ruth lembra que, como Pandora, a esperança foi o único bem que restou dentro da caixa dos males que aquela primeira mulher deitou ao mundo... Ainda assim, penso sem o dizer, que será um tormento viver diariamente com o perigo, que eventualmente leva com o tempo a menosprezar riscos. E disso sabendo aqueles que lançam o mal ao mundo, procederem na certeza de que as vidas são tão fortes quanto a fraqueza das suas ilusões.

Ao escrever estas linhas, evoco Ruth a caminho do trabalho, o olhar brilhante de orgulho do muito já realizado e a convicção do imenso que o futuro promete, o asfalto refletindo a luz intensa do início da tarde, o céu como que aspergido por pedaços de madrepérola, a frescura da paisagem do Índico ao fundo, com antigas dunas perdidas entre palmeiras e trilhos gretados rompendo através das machambas da ‘barreira vermelha’, agora em pousio sazonal; a elegância do seu porte ao sair do carro protegido pela sombra generosa da Albizia; o convidativo candor dos longos corredores que a levam ao gabinete que um dia foi o meu; o sorriso encantador, saudando colegas com breves interjeições de habitual bom humor, recebendo Aquino e dois colegas que se juntam a ela, antes de destrancar a porta que abre sobre o horizonte, as amplas janelas que revelam a extensão do campo universitário e a verdura pálida de inverno que ela olha e aspira com enlevo por um longo momento, o exultante sentimento de agora viver os melhores anos da sua vida; e por último pousar sobre a mesa o volume de correspondência que havia recolhido, notando distraidamente a nova pilha de publicações, o fascínio da palavra impressa nos livros que são a sua paixão, a curiosidade e o amor que governa a sua existência; até abrir o recém-chegado falso envelope que nunca, jamais, deveria ter sido aberto.

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Lápide em memória de Ruth First e Aquino de Bragança, jardim interior do Departamento de Arqueologia e Antropologia (r/c) e Centro de Estudos Africanos (1°piso), Universidade Eduardo Mondlane, Maputo 2007


Ilustrações: (i) Foto do autor, Junho de 2007; e (ii) Foto do autor, 2011

(1) A. Koestler, Arrow in the Blue, Vintage 2005 (1st published 1952) London, p.310

(2) Cf. narrativa ‘A Raiz da Serradura’

(3) https://www.merriam-webster.com/dictionary/myth#word-history

(4) Michael Ignatieff, Isaiah Berlin: A Live, London 2000: Vintage (original Chatto & Windus 1998), p.250. Cf. ainda a novela ‘A Memória do Tempo’ (incluída no 'Grande Hotel Fantasia')

(5) Seus pais foram membros fundadores do Partido Comunista da África do Sul, e o seu marido um dos líderes executivos nos anos 70 e 80; cf. Gillian Slovo, Every Secret Thing, My Family My Country, Little, Brown and Co, London 1997.

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